O rapaz não conseguia deixar de olhar para a rapariga e de pedir mentalmente: “Vá lá, tira os olhos do livro e olha para mim!” E, de facto, nesse momento, ela ergueu a cabeça e olhou um instante pela janela, mas logo mergulhou de novo no livro que tinha no regaço.
O eléctrico deslizava com ruído pelos carris e os poucos passageiros iam sentados individualmente nos lugares duplos, à excepção de um casal de idade. Ninguém falava e apenas se ouvia uma voz mecânica, que anunciava antecipadamente o nome da paragem seguinte. O rapaz ter-se-‑ia levantado de bom grado para se sentar ao lado dela. Talvez um olhar fosse suficiente para descobrir que género de livro ela estava a ler e, munido dessa pista, rapidamente arranjaria pretexto para uma conversa.
Mas não entrou nenhum grupo de mulheres idosas a quem ele, de livre vontade, pudesse ceder o lugar. Também não sentia coragem de se levantar e de ir sentar-se no lugar vago junto dela. Portanto, não lhe restava outra opção senão dirigir-lhe o olhar e transmitir-lhe, mentalmente, todo o poder de sugestão de que era capaz. O cabelo rasta da rapariga estava desordenado e preso com um entrançado colorido. A cara, um pouco escondida pelas madeixas, era esguia e escura; quando ela ergueu a cabeça por um momento, os seus olhos irradiaram luminosidade.
“Talvez esteja a ler um livro numa língua estrangeira”, pensou ele, “e apenas se encontre aqui de visita, ou a caminho da estação”. Se assim fosse, ambos mudariam de linha no mesmo local. Ou talvez ela fosse apanhar o comboio e afastar-se centenas ou milhares de quilómetros. O rapaz inclinou-se, mas não descobriu mala alguma junto dela. O eléctrico aproximava-se da paragem sem que ela fizesse menção de se levantar. Os seus olhos percorreram furtivamente o eléctrico apenas uma vez e ele teve a impressão de que, por um momento, estiveram fixados nele. A porta abriu-se bruscamente na paragem em que ele devia sair. Contudo, ele hesitou. “E agora?”, pensou. “Se desço, não torno a vê-la, com toda a certeza. E se ficar, será que ela vai reparar em mim?”
Algumas pessoas entraram e o eléctrico encheu-se. Para não perdê‑la de vista, o rapaz moveu-se no lugar de um lado para o outro e, por fim, acabou por se sentar no lugar do lado, porque um homem magro, com um extravagante chapéu de aba larga, se sentara exactamente à sua frente, cortando-lhe a vista. A rapariga levantou os olhos do livro e olhou para ele um instante, um instante que a ele pareceu uma eternidade. A rapariga baixou novamente o olhar para o livro aberto e ele teve o prazer de voltar a observá-la, sem ter de disfarçar. De repente, ouviu-se um burburinho. Quatro skins[1] entraram de rompante no eléctrico e um deles pegou imediatamente no chapéu largo de fitas b ordadas do passageiro sentado à frente do rapaz e pô-lo na cabeça, para gáudio dos amigos.
Quando os companheiros lhe pediram o chapéu, ele fê-lo voar pelo eléctrico e gritou:
— Agarrem-no!
Um dos rapazes apanhou o chapéu e o jogo continuou, até que o entusiasmo esmoreceu e o chapéu acabou por ficar caído no chão. O dono não fez qualquer menção de pôr fim ao abuso. A princípio, ainda se esforçara por seguir com os olhos o voo do chapéu de feltro mas, quando viu o quão estragado estava, encolheu a cabeça entre os colarinhos subidos do casaco.
O jovem observador tentou passar despercebido. O divertimento parecia ter acabado para o bando de skins e as gargalhadas, ainda há pouco sonoras, diminuíram. O chapéu continuava no chão, sem que nenhum dos passageiros se baixasse para o apanhar. Todos evitavam mexer-se para não serem notados pelo bando de “cabeças rapadas”.
As portas do eléctrico abriram-se de rompante na paragem seguinte. Sem se fazer notado, o homem do chapéu carregara no botão de abertura da porta para, de um salto, poder sair do eléctrico. O rapaz encontrava-se agora bastante desprotegido, porque estava sentado mesmo diante do bando. Entretanto, os passageiros tinham-se dispersado. A rapariga, não querendo atrair atenções, tinha os olhos literalmente colados às páginas do livro. De repente, um sonoro “Olá!” rasgou o silêncio geral forçado e um dos skins arrancou o livro da mão da rapariga.
— O que é que esta preta está a ler? — gritou, atirando o livro a outro “cabeça rapada”, que o agarrou e disse, depois de lançar uma olhadela ao título:
— Psicocaca. Nem dá para usar na sanita!
O livro foi depois ter com o homem pálido e franzino que vestia calças de montar pretas e uma camisa preta e que, ao contrário dos outros, tinha um corte de cabelo normal.
— Vamos tratar agora desta! — disse um deles, de repente, dirigindo-se para junto da rapariga de cor, acompanhado por um companheiro.
O rapaz não conseguia perceber a intenção deles. Estavam em frente da rapariga e tapavam-na com o corpo. Calculava que tentariam apalpá-la. De qualquer forma, era óbvio que tinha de a socorrer. Enquanto observava os indivíduos que, juntamente com o homem franzino, eram cinco, o rapaz reflectia. Tinha ouvido muitas vezes dizer que aquele tipo de gente não tinha pejo em acabar com as pessoas de quem não gostava e que, em situações idênticas, não era raro atirarem-nas dos eléctricos em andamento. Os olhos do jovem procuraram os do homem franzino. Este olhava fixamente na direcção oposta, como se soubesse que alguém gritaria em breve. E, de facto, a rapariga gritou:
— Tira as patas! Porcos!
O jovem assustou-se. “Agora tenho de agir!”, disse para si. E os seus olhos voltaram a procurar os do homem franzino. Um dos rapazes que incomodava a rapariga gritou para o grupo:
— Segurem aqui nas patas da idiota desta preta, que não consegue estar quieta!
Outros skins acorreram a ajudar os companheiros. O rapaz levantou‑se, mas sentiu imediatamente uma pressão que o fez sentar-se no lugar.
— Não vais ser palerma a ponto de ir ajudar aquele pedaço de lixo, pois não?
O jovem fitou a cara pálida do homem que fizera a pergunta e que o olhava de forma impenetrável. Depois, olhou em volta, em busca de ajuda. Atrás dele, duas mulheres dirigiam para fora o olhar cansado e, junto do indivíduo franzino, ia sentado, sozinho, um homem dos seus trinta anos, de ombros bastante largos, que não fazia caso algum da rapariga, que necessitava de ajuda imediata, limitando-se a olhar fixamente o vazio. O rapaz não aguentou mais e esticou o braço na direcção do botão de emergência. “Depressa, antes que algum deles me veja. O condutor vai ter de intervir e chamar a polícia”, pensou.
O homem franzino bateu-lhe na mão esticada com a lombada do livro e disse:
— Se fizeres isso, eles partem-te os ossos todos.
Naquele momento, ouviu-se um soluço e um dos indivíduos agitou um sutiã de renda como se fosse um troféu. O rapaz não aguentou mais tempo sentado. Puxou pelo braço de um dos skinheads, arregaçou-lhe a manga do blusão e gritou, numa voz cortante:
— Alto! Larguem a rapariga! Se não pararem imediatamente, eu mordo este braço e olhem que eu tenho SIDA!
O skinhead atarracado a quem o braço pertencia não se atreveu a mexer-se e o suor começou a escorrer-lhe pela testa, porque o rapaz não deixara qualquer dúvida de que lhe cravaria mesmo os dentes no braço. Os outros três recuaram um pouco e soltaram a rapariga. Quando o eléctrico parou e a porta se abriu, um dos três disse:
— Vamos mas é embora. Não gosto da preta. De certeza que também não está limpa.
— Tens razão — sibilou um dos outros.
Os dois restantes esforçaram-se por não deixar transparecer alívio.
— E agora? — perguntou o “cabeça rapada” cujo braço o rapaz ainda mantinha sequestrado.
— Primeiro saem os outros, e tu sais em último! — ordenou ele.
Os outros três saltaram antes que as portas automáticas voltassem a fechar-se e o franzino, parando no limiar da porta, cuspiu uma ameaça:
— Ainda vamos apanhar-te, cão!
Quando o condutor deu sinal de que ia fechar a porta, o rapaz empurrou o skinhead atarracado para a rua. O eléctrico fechou-se e um dos cinco bateu com a bota contra a porta. O rapaz respirou de alívio quando o eléctrico se pôs em andamento. De repente, as duas mulheres mais velhas começaram a aplaudir e os restantes passageiros imitaram-‑nas.
— Admirável! Foi admirável, jovem!
— Estupendo! É um herói!
Todos, à excepção da rapariga, voltaram a aplaudir fortemente.
O rapaz estava de pé ao lado da rapariga, que enfiava o sutiã numa mochila pequena e não sabia o que dizer. Embora pudesse sentar-se agora ao lado dela, ficou de pé. A rapariga apertou a blusa, desviando o olhar.
Quando, finalmente, o rapaz fez menção de se sentar, ela afastou-se dele, perguntando:
— Tens mesmo SIDA?
O rapaz encolheu os ombros, olhou para ela e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Ralph Grüneberger
Karlhans Frank (org.)
Menschen sind Menschen. Überal.
München, C. Bertelsmann Verlag, 2002
(Tradução e adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
[1] “Skin” é a abreviatura do termo inglês “skinhead”, que significa “cabeça rapada”. (N.T)
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