sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Boas Festas 2012

 
A Equipa da Biblioteca Escolar e Centro de Recursos Educativos do Agrupamento Vertical de Escolas Dom Paio Peres Correia deseja a toda a comunidade escolar e seus familiares, a todas as BECRE's e a todos os visitantes deste blogue, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo de 2013.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O desejo de Ruby

          Se caminhar por uma certa rua de uma certa cidade na China, e passar pelo mercado de animais de estimação, com os papa-arroz amarelos e verdes a saltar nas gaiolas de bambu, os peixinhos dourados e as tartarugas de água doce nas taças de porcelana, há de chegar a um quarteirão de casas. Nesses edifícios, agora castanhos devido à idade e à sujidade, moram muitas famílias. Porém, se olhar com atenção, verá que outrora essas casas eram uma só, uma magnífica casa que pertencia a uma única família.
A casa foi construída por um velho que tinha estado na Montanha de Ouro. Era este o nome que os Chineses davam à Califórnia, quando muitos deles participaram na Corrida ao Ouro, mas poucos regressaram. Este homem regressou, e regressou muito rico. Fez, em seguida, o que todos os homens ricos faziam na Antiga China: casou com muitas mulheres. As mulheres tiveram muitos filhos e os filhos também tiveram muitas mulheres. A dada altura, a casa transbordava de gritos e risos de mais de uma centena de crianças.
Entre estas crianças, havia uma menina a que todos chamavam Ruby, porque adorava a cor vermelha. Na China, o vermelho é a cor das celebrações. No Dia de Ano Novo, as crianças recebem envelopes vermelhos cheios de "dinheiro da sorte" e as noivas vestem-se de vermelho no dia do casamento. Contudo, Ruby insistia em vestir-se de vermelho todos os dias. Mesmo quando a mãe a obrigava a usar cores mais sóbrias, como as primas faziam, Ruby atava o seu cabelo negro com fitas vermelhas.
Uma vez que tinha muitos netos, o avô de Ruby contratou um professor para vir a casa ministrar as lições. Todos os netos que quisessem aprender tinham aulas com este tutor. Esta não era uma situação comum na China de então, dado que a maioria das raparigas nunca aprendia a ler ou escrever.
Sempre que o tempo estava bom, as aulas tinham lugar no jardim. As janelas do escritório do avô davam para o jardim e, com frequência, o velho levantava-se para observar os netos.
Um dia, o avô viu a parede alta e branca do jardim coberta de caligrafias. Os netos tinham estado a praticar a escrita. O avô riu-se ao ver que muitos tinham a cara e as mãos cheias de tinta! Foi então que reparou que uma das folhas era mais bela do que as restantes. Qual dos seus netos produzira tão bela caligrafia? Entretanto, no jardim, o tutor elogiava Ruby, que tinha as orelhas tão vermelhas como o casaco que vestia.
Para acompanhar os primos nos estudos, a verdade é que Ruby tinha de se esforçar o dobro. Com efeito, quando terminavam os estudos, os rapazes iam brincar; as raparigas, porém, tinham ainda de aprender a cozinhar e a governar a casa. Eram estas as únicas tarefas que as mães achavam dignas de aprendizagem. Uma a uma, todas as netas abandonavam as aulas. Todas exceto Ruby, que escolhia a noite para compensar os bordados que não fizera de dia. E, durante muitas noites, a sua vela era a única acesa em toda a casa, depois de todos se terem ido deitar.
Um dia, o tutor pediu às crianças que escrevessem um poema. Ruby escreveu:
Má sorte ter nascido rapariga;
pior sorte ter nascido nesta casa
onde apenas os rapazes recebem atenção.
O professor ficou impressionado com o poema da menina e mostrou-o ao avô. Este também ficou impressionado, além de preocupado. Chamou, então, a neta ao escritório. Ruby viu o avô sentado na cadeira, com o poema pousado na secretária diante dele.
— Foste tu que escreveste este poema? — perguntou.
— Sim, avô, escrevi — respondeu a neta.
— Achas que nesta casa só nos preocupamos com os rapazes?
— Não, avô — respondeu Ruby, arrependida por ter perturbado o avô.
— Ruby — disse o avô, gentil — gostaria de saber porque escreveste este poema. De que forma cuidamos melhor dos rapazes?
A neta tentou escolher um exemplo insignificante.
— Bem, quando se realiza o Festival da Lua, e nos dão um bolinho a cada um, os rapazes ficam sempre com a parte da gema.
— Ai sim? — disse o avô, como que à espera de mais revelações.
— E quando fazemos o Festival da Lanterna, as raparigas só recebem simples lanternas de papel, enquanto os rapazes recebem lanternas vermelhas com a forma de peixinhos dourados, galos e dragões.
O avô riu baixinho. Nunca havia pensado naquilo. Mas imaginava, facilmente, o quanto a neta gostaria de ter uma lanterna vermelha.
— Mas o mais importante — concluiu Ruby, fitando as biqueiras dos seus sapatos vermelhos — é que os rapazes vão para a universidade, enquanto as raparigas se casam.
— Não queres casar-te? — perguntou o avô. — Tens muita sorte, porque uma rapariga desta família pode casar com quem quiser.
— Eu sei, mas preferia ir para a universidade.
O avô afagou-lhe o cabelo.
— Obrigado por teres desabafado comigo, Ruby. Continua a estudar. Aproveita o mais que puderes.
E Ruby continuou a estudar. Alguns dos rapazes cresceram e foram para a universidade. Outros ficaram em casa e constituíram família. Mas todas as raparigas casaram e foram viver com as famílias dos maridos. Ruby sabia que, em breve, chegaria a sua vez. Nos lagos, observava as carpas cor de laranja e brancas, que procuravam pão sob uma fina camada de gelo. O Ano Novo chinês aproximava-se e a menina sabia que seria o último que passaria naquela casa.
No Dia de Ano Novo, calçou os sapatos de veludo vermelho e prendeu o cabelo com fitas vermelhas. Depois foi desejar a todos um feliz ano. Começou pelas primas casadas, e em seguida felicitou os pais, os tios e as tias. Cada um lhe deu um envelope vermelho cheio de dinheiro da sorte. Por fim, fez uma vénia ao avô:
— Desejo-te boa sorte e prosperidade, avô.
— Boa sorte, Ruby — respondeu ele, entregando-lhe um envelope vermelho muito grosso.
Todos os olhares da família se cravaram nela enquanto abria o presente. O presente não era dinheiro; era algo muito melhor: era a carta de uma universidade que se dizia orgulhosa por aceitar Ruby como uma das suas primeiras alunas!
E foi assim que Ruby realizou o seu desejo.
Esta história é verdadeira.
Sei-o, porque Ruby é minha avó. E todos os dias veste algo vermelho.
Shirin Yim Bridges
Ruby's Wish
San Francisco, Chronicle Books, 2002
(Tradução e adaptação)
 
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

Feliz Natal e Próspero Ano Novo de 2013


A Equipa da Biblioteca Escolar e Centro de Recursos Educativos do Agrupamento Vertical de Escolas Dom Paio Peres Correia deseja a toda a comunidade escolar e seus familiares, a todas as BECRE's e a todos os utilizadores deste blogue, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo de 2013.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Duo Cantabile


 


Música nas Igrejas-  Ermida de São Sebastião
10 Novembro 2012, às 18:00 h

Duo Cantabile
Luis Conceição e Isabel Reis
 
Concerto Comentado

Quella Fiamma che m'accende - Benedetto Marcelo
 

Vieni e non tardar - Mozart
 

Voi che sapette - Mozart
 

Ich Kann's nicht fassen nicht glauben - Schumann
 

Stride la vampa - Verdi
 

Ave Maria - Schubert
 

Habanera - Bizet
 

Una voce poco fa - Rossini
 

Over the rainbow
 

America - L. Bernstein

               
Organização - Academia de Música de Tavira
Rua João Vaz Corte Real nº 20 8800-441 Tavira
Tele: 281322436

Os Herdeiros da Lua de Joana, Maria Teresa Maia Gonzalez (Livro do Mês - Novembro 2012)

Top Leitores - Outubro 2012


A canção da avó

Projecto: Abrir as portas ao sonho e à reflexão
Esta história faz parte de um ciclo em que a figura feminina aparece como elemento central
 
No coração do México, os falcões sobrevoam as altas montanhas, mergulhando em direção às encostas suaves, semeadas de milho. Debaixo do sol tropical, as iguanas descansam sobre rochedos brilhantes, e os tucanos conversam com os guaxinins empoleirados em árvores verde-esmeralda. Por entre as colinas, os pumas correm, as raposas cinzentas procuram galinhas, e os lobos uivam entre si, à noite.
Numa aldeia situada no sopé das montanhas, vivia uma avó com a neta. Plantavam milho, tomates e girassóis na Primavera e juntas viam os rebentos verdes despontar da terra. No Verão, colhiam lírios brancos como leite, punham-nos em cestos às costas, e levavam-nos para vender no mercado. Pelo Outono, decoravam caules esguios de milho para a festa das colheitas, a fim de agradecer os cereais de um ano inteiro. No Dia dos Mortos, costumavam erigir um altar e acender velas, relembrando os entes queridos. E no Natal, pegavam em cola e papel e faziam pinhatas, que enchiam com frutas e doces.
A avó era alta e imponente. Tinha as faces macias e as maçãs do rosto bem marcadas. Os olhos eram profundos, castanhos e doces. Embora tristes, eram bondosos. Tinha o peito largo e as ancas redondas. Pernas e pés robustos ligavam-na à terra, como se fosse uma árvore antiga. Os braços eram fortes e as mãos graciosas, com dedos longos e finos. Era uma mulher tão delicada como os rebentos de um jacarandá.
A neta gostava de explorar e de sonhar. Costumava brincar sozinha, nos campos e nas florestas, mas tinha medo das sombras escuras, dos barulhos dos animais, e de tudo o que fosse novo e diferente. "O que haverá no buraco desta árvore velha?" pensava, enquanto se erguia nos bicos dos pés e esticava o pescoço para espreitar o tronco oco. Contudo, mal ouvia um gato-do-mato nos ramos altos, começava a tremer dos pés à cabeça, como um saco de folhas secas a ondular numa tarde ventosa.
Certo dia, a neta assustadiça encontrou um tatu. Não passava de um vulgar tatu que se cruzara no seu caminho, mas a rapariga tremeu como se fosse um urso feroz com garras afiadas e dentes rangentes. Depois desse encontro, cada pequena sombra no caminho para casa iria transformar-se num monstro aterrador.
Quando a avó ouviu o barulho da porta, correu para a neta e abraçou-a. Em seguida, sentou-a ao colo e afagou-a com doçura. Enquanto lhe afagava o cabelo e as costas, ia cantando:
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não confiam. A minha ternura dar-te-á confiança: a confiança que sinto, a confiança que a minha avó sentia, e que herdou da avó dela.
A neta sentiu-se invadida por um calor reconfortante e, enquanto o sol se punha, deixou de tremer e adormeceu.
No dia seguinte, um grupo de crianças surpreendeu-a enquanto brincava à beira da estrada. Rindo e gritando, correram para ela e perguntaram-lhe:
— Onde fica o rio?
Em vez de fugir, a menina apontou com o dedo para a esquerda. Embora tremesse por dentro, o dedo mantivera-se firme. Nessa noite, contou à avó o que acontecera. A avó sorriu:
— Isso já é um progresso.
Pegou na neta ao colo e afagou-a como se faz a um gatinho. Depois, começou a cantar:
— Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não têm coragem, mas hoje mostraste bravura. A tua coragem alia-se à minha e à da minha avó, que a herdou da avó dela.
A neta sentiu uma força percorrer o seu corpinho e as tremuras pararam.
Alguns dias depois, um beija-flor caiu de um ninho no jardim e partiu uma asa. Em vez de fugir, a neta assustadiça dirigiu-se à avezinha e pegou nela. O corpo do pássaro tremia ainda mais do que o seu. A menina sentia o coraçãozinho minúsculo e trémulo e a barriguita quente e penugenta. Pegou no beija-flor com a mesma ternura com que a avó pegara nela e levou-o para casa.
A avó sabia tomar conta de animais feridos. Fizeram juntas um pequeno ninho numa caixa, com tecido e palha, e alimentaram o pássaro com um conta-gotas. A menina deu de beber ao bichinho, gota a gota. À medida que o fazia, ia sentindo um entusiasmo percorrer o seu corpo.
A avó sorriu e o sorriso iluminou-lhe o olhar.
— Isto é que é um progresso!
Enquanto o beija-flor dormia, pegou na neta e cantou:
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não ajudam os outros. Hoje ajudaste uma criatura pequena e assustada e descobriste o teu dom de curar.
Durante toda a noite, a avó manteve a sua querida neta ao colo e continuou a cantar:
Este é o dom que te transmito, que é também o dom da minha avó, que o herdou da avó dela.
Certa tarde, a neta observava uma loja do mercado quando o comerciante acusou injustamente uma criança de ter roubado. A menina viu a cara irada do homem enquanto este apontava um dedo ameaçador ao menino. Embora com o coração a bater, aproximou-se do comerciante e disse:
— Este rapaz não roubou nada. Eu vi. Por favor, não grite com ele.
O comerciante grunhiu uma resposta e a rapariga perguntou:
— Quanto dinheiro perdeu?
— Dez cêntimos — respondeu o homem.
A menina remexeu no bolso e deu-lhe todo o dinheiro que tinha.
— Isto é que é progresso! — exclamou a avó, quando a neta lhe contou o sucedido, quase sem fôlego pela corrida até casa.
A avó pegou nela ao colo e afagou-a durante muito tempo.
Ouve bem, minha querida. O mundo é um lugar assustador para os que não têm dignidade. Hoje mostraste a tua. A ela junto a minha e a da minha avó, que a herdou da avó dela.
A neta sentiu um orgulho estranho invadir-lhe o corpo. Sentiu-se maior e mais forte.
◊◊◊◊◊◊
Quantas vezes mais a avó acariciou a neta? Quantas vezes mais cantou para ela? Não sei. Mas sei que o fez muitas e muitas vezes, durante muitas semanas e muitos anos. Através da sua ternura, incutiu na neta assustadiça confiança e coragem, destreza e dignidade. E as suas canções eram tão profundas que penetravam o coração, o sangue, e todo o corpo da menina.
A neta cresceu esperançada, digna de confiança, generosa e bondosa. Já ninguém se lembrava de que fugira em tempos de guaxinins. Tornou-se uma mulher forte, de gargalhada fácil, tirando prazer de tudo o que a rodeava.
E muito mais tarde, embora já tivesse filhos, ainda punha a cabeça no colo da avó de vez em quando. Conhecia bem a linguagem das mãos dela e sorria, de olhos fechados, enquanto a avó percorria o caminho familiar da ternura que sempre lhe mostrara.
Com o decorrer dos anos, a avó tornou-se velha e frágil. Chegou então a vez da neta tomar conta dela. De manhã bem cedo, vinha acender o lume e aquecer água para o chá. Cozinhava, lavava e penteava o cabelo prateado da velhinha. Massajava com carinho os pés cansados, dedo a dedo. Pegava nas mãos que tanto amava e massajava-lhe os dedos hirtos. Por vezes, embora mais raramente, caminhavam juntas pela aldeia, atravessavam o vale e iam até às montanhas, rindo e cantando juntas. Sempre que o piso era incerto, a neta oferecia o braço à avó.
Uma noite, a neta sonhou com a avó a subir sozinha a montanha. Queria juntar-se a ela, mas a avó virou-se e levantou a mão:
— Tenho de ir sozinha — dissera, com um sorriso tranquilo nos olhos.
No dia seguinte, como de costume, a neta foi a casa da avó. Mas, quanto tentou acordá-la, viu que o corpo estava frio e a face serena. De joelhos, fulminada pela dor, a neta sentiu o coração a esvoaçar e o estômago a tremer, como quando era criança.
Estremeceu dos pés à cabeça, como ramo de um cedro apanhado no meio de uma tempestade tremenda. Como poderia viver sem a sua avó adorada? O coração abriu-se como um rio e as lágrimas inundaram o seu rosto. Os soluços sacudiram-na toda. De repente, ouviu a voz da avó:
— Minha pequenina, ouve-me.
A neta sentiu umas mãos fortes e quentes a acariciar-lhe as costas. Eram mãos invisíveis, mais poderosas do que as mãos físicas da avó. Essas mãos abraçaram-na e embalaram-na, incutindo-lhe bem-estar por todo o corpo. Os soluços cessaram, tão depressa como tinham começado. Sentiu uma enorme leveza no coração e força nos membros. Pôs-se de pé, e afagou a face e a testa da querida avó morta.
◊◊◊◊◊◊
A neta já foi muitas vezes avó. E muitas vezes também já pegou ao colo nos netos. Embalou-os com os seus braços fortes e capazes, riu e chorou com eles, e cantou para eles, enquanto os acariciava.
Meus pequeninos, ouçam bem. O espírito da avó rodeia-nos. Está no vento e nas árvores. Está nos vales e nas colinas. As mãos do espírito da avó brincam com os peixes nos riachos e acendem o lume da lareira. Está sempre presente quando estamos com amigos calorosos, quando provamos comida deliciosa, e sempre que partilhamos sorrisos ou lágrimas. Onde quer que estejamos, a avó está sempre perto. E sempre que precisarmos dela, podemos fechar os olhos e sentir-nos no seu colo.
Barbara Soros; Jackie Morris
Grandmother's Song
Bristol, Barefoot Books, 1998
(Tradução e adaptação)
 
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O Dia de Todos os Santos

 
O Dia de Todos os Santos, que se celebra hoje, é cada vez mais o Dia dos Fiéis Defuntos, marcado para amanhã. Igreja não condena esta vontade popular, que aproveita assim o feriado para lembrar os familiares que já morreram. A homenagem aos mortos acontece um pouco por todo o mundo, de formas muito diferentes.
 
O primeiro dia de Novembro é marcado pela ida de milhares de portugueses aos cemitérios, que nesta altura estão especialmente enfeitados. Mas esta visita tem tendência a acontecer no dia anterior ao definido pela Igreja, muito por culpa da força popular. Assim, é cada vez mais comum celebrar-se o Dia dos Fiéis Defuntos no Dia de Todos os Santos.
 
Um fenómeno que pode ser explicado simplesmente pelo facto de o dia 1 de Novembro (Dia de Todos os Santos) ser feriado e o dia 2 (Dia dos Finados), não. Porém, o padre José Manuel Almeida prefere acrescentar uma justificação mais espiritual.
 
"A voz do povo é a voz de Deus e se calhar muitos dos nossos defuntos podem ser também celebrados no dia de Todos os Santos", explica. O religioso vai mais longe e acredita que co-mo "Deus escreve direito por linhas tortas, esta mistura popular dos dois dias pode fazer-nos pensar e levar à luz: Se calhar não são datas assim tão diferentes."
 
Uma coisa parece certa, os portugueses dão mais significado ao Dia dos Finados que à celebração de Todos os Santos. Talvez porque esta é uma data em que "particularmente se recordam os amigos e familiares que se encontram a caminho da comunhão com Deus", refere o prior de Santa Isabel. A proximidade das pessoas aos seus defuntos aumenta o significado desta data, em relação à celebração de santos que são desconhecidos.
 
A homenagem aos mortos é um acontecimento global e é vivido de diferentes formas um pouco por todo o mundo. Tal como sublinha o padre José Manuel Almeida, "no México é uma festa bastante divertida, enquanto aqui tem um pendor mais triste e saudoso".
 
Em Portugal, no dia de Todos-os-Santos as crianças saem à rua e juntam-se em pequenos bandos para pedir o pão-por-deus de porta em porta. As crianças quando pedem o pão-por-deus recitam versos e recebem como oferenda: pão, broas, bolos, romãs e frutos secos, nozes, amêndoas ou castanhas, que colocam dentro dos seus sacos de pano. É também costume em algumas regiões os padrinhos oferecerem um bolo, o Santoro. Em algumas povoações chama-se a este dia o ‘Dia dos Bolinhos’.
 
Esta tradição teve origem em Lisboa em 1756 (1 ano depois do terramoto que destruiu Lisboa). Em 1 de Novembro de 1755 ocorreu o terramoto que destruiu Lisboa, no qual morreram milhares de pessoas e a população da cidade, que era na sua maioria pobre, ainda mais pobre ficou.
 
Como a data do terramoto coincidiu com uma data com significado religioso (1 de Novembro), de forma espontânea, no dia em que se cumpria o primeiro aniversário do terramoto, a população aproveitou a solenidade do dia para desencadear, por toda a cidade, um peditório, com a intenção de minorar a situação paupérrima em que ficaram.
 
As pessoas, percorriam a cidade, batiam às portas e pediam que lhes fosse dada qualquer esmola, mesmo que fosse pão, dado grassar a fome pela cidade. E as pessoas pediam: "Pão por Deus".
 
Esta tradição perpetuou-se no tempo, sendo sempre comemorada neste dia e tendo-se propagado gradualmente a todo o país.
 
Até meados do séc. XX, o "Pão-por-Deus" era uma comemoração que minorava as necessidades básicas das pessoas mais pobres (principalmente na região de Lisboa). Noutras zonas do país, foram surgindo variações na forma e no nome da comemoração. A designação indicada acima (Dia dos Bolinhos) em Lisboa nunca foi utilizada, nem era sequer conhecido este nome.
 
Nas décadas de 60 e 70 do séc. XX, a data passou a ser comemorada, mais de forma lúdica, do que pelas razões que criaram a tradição e havia regras básicas, que eram escrupulosamente cumpridas: só podiam pedir o "Pão-por-Deus", crianças até aos 10 anos de idade (com idades superiores as pessoas recusavam-se a dar); as crianças só podiam andar na rua a pedir o "Pão-por-Deus" até ao meio-dia (depois do meio-dia, se alguma criança batesse a uma porta, levava um "raspanete", do adulto que abrisse a porta).
 
A partir dos anos 80 a tradição foi gradualmente desaparecendo e, actualmente, raras são as pessoas que se lembram desta tradição.
 
Até a comunicação social, contribui para o empobrecimento da memória coletiva. Neste dia todas as estações de TV, Rádio e jornais, falam no Halloween, ignorando completamente o "Pão-por-Deus".
 
Fonte e mais informação

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O sorriso no elevador

         Num tempo em que os homens tinham desaprendido de sorrir, apareceu, certo dia, uma menina que tinha um sorriso tão simpático que uma pessoa até sentiria calor no coração, se o riso e a alegria não tivessem sido expulsos há tanto tempo da Terra.
Não se ganhava nada com eles, diziam, e, hoje em dia, quem é que tem alguma coisa para dar?
Mas, um belo dia, sem nada o deixar antever, apareceu aquela menina no elevador…
A princípio, ninguém reparou, tão preocupadas estavam as pessoas consigo mesmas.
Nem sequer Tomás, que naquele dia regressava da escola. Seguia no elevador, sério, a refletir, quando, de repente, ouviu a menina perguntar:
— Também sabes rir?
Admirado, Tomás virou-se.
— Já não rio desde os quatro anos — resmungou.
— Porquê? — perguntou a menina.
— Rir não serve de nada. Não vale um cêntimo. Aprende-se isso logo no infantário.
Ao entrar mais tarde no elevador com a mãe, Tomás voltou a encontrar a menina.
— Olá! — disse ela com um sorriso radiante.
— Olá — balbuciou Tomás, envergonhado.
E subiram calados.
Mas como a menina não deixava de sorrir, Tomás também não conseguiu por fim conter um sorriso.
Pela primeira vez! Mas a mãe logo ficou muito assustada.
— Pára com isso! — ralhou-lhe ela. — Não temos nada para dar!
Tomás assustou-se e fez uma cara séria.
Mas não conseguia esquecer o sorriso da menina no elevador.
Quando, na manhã seguinte, voltou a encontrá-la, ficou tão satisfeito que esboçou um tímido sorriso.
— Mas tu sabes rir! — exclamou a menina, radiante.
Tomás ficou tão contente que até sentiu umas coceguinhas pelas costas acima.
Desta vez sorriu, extasiado, e as cócegas então é que não paravam… Nunca tivera uma sensação daquelas! Mas era uma sensação tão boa que ele agora sorria sem parar na rua, no autocarro, na escola, na padaria. E Tomás tinha um sorriso tão amável que as pessoas não conseguiam deixar de responder com outro sorriso. E como elas sentiam de repente um formigueiro, também não conseguiam parar de sorrir!
Nesse dia, Tomás voltou alegremente para casa.
Estava todo contente: iria voltar a ver a menina! Mas quando, a sorrir, abriu a porta do elevador, só encontrou alguns vizinhos … que lhe sorriram, hesitantes. A menina já lá não estava e nunca mais a viu…
Só tinha ficado aquela sensação agradável de formigueiro.
E a menina?
Ora bem, caso alguma vez a encontres no elevador, já sabes…
Elke Bräunling
Da wird dia Angst ganz klein
Limburg, Lahn Verlag, 1998
(Tradução e adaptação)
 
 
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

Concerto por Josué Nunes


 


Música nas Igrejas-  Ermida de Santa Ana
3 Novembro 2012, às 18:00 h


Josué Nunes
Guitarra

Fernando Sor (1778-1839)
Variações Sobre o Tema da Flauta Mágica

Augustin Barrios Mangoré (1887-1944)
La Catedral
Prelúdio Saudade
Andante
Allegro

J.S. Bach(1685-1750)
Suite Bwv 996(lute)
Passagio e Presto
Allemande
Courante
Sarabande 
Bourré
Gigue

Francisco Tárrega (1852-1909)
Recuerdos de la Alhambra

Isaac Albéniz (1860- 1909)
Astúrias        
Rumores de la Calheta



Apoio :                                             
Organização  - Academia de Música de Tavira
Rua João Vaz Corte Real nº 20 8800-441 Tavira
Tele: 281322436

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Uma oficina diferente

Esta história faz parte de um ciclo em que a figura feminina aparece como elemento central
 
Uma oficina diferente
Aboubacar trancou a porta da sua oficina com um suspiro cansado mas satisfeito. O dia fora longo. Parecia que todas as motas e motocicletas da cidade tinham decidido avariar naquele dia. Felizmente não lhe faltavam clientes. Alguns diziam que não havia melhor mecânico em toda a capital, Ouagadougou, outros diziam que em todo o Burquina Faso! Aboubacar sorria modestamente. Sabia bem que, quando os clientes que tinham chegado suados a empurrar a motoreta sob o sol intenso regressavam a casa montados nela, não se poupavam a elogios… de alívio e de felicidade!
A meio dos quarenta, Aboubacar era o filho mais velho de uma família numerosa. Ainda pequeno, os pais tinham-no enviado para casa de um parente afastado que vivia na capital, para aprender um ofício e ser mais tarde o chefe da família, como era a tradição. Um vizinho mecânico, a quem todos tratavam carinhosamente por TioAssouf, gostou daquele rapazinho de olhar vivo e curioso, e acabou por levá-lo para a sua oficina. A família afeiçoou-se a Aboubacar, e como os filhos de Assouf tinham partido para França, este acabou por passar a viver em casa dele.
Ao final do dia, o Tio Assouf gostava de se sentar à porta de casa a fumar e a ler o jornal. Certo dia, o rapazinho perguntou-lhe:
— Tio Assouf, o que está a fazer com esses papéis nas mãos?
— Estou a ler o jornal, Aboubacar — respondeu-lhe seriamente.
— E porque é que está sempre a ver os mesmos papéis?
— Aboubacar, eu não estou a ver, estou a LER — disse-lhe. — E isto é um jornal. Aqui estão escritas as coisas mais importantes que acontecem no nosso país. Chega cá.
E perguntou-lhe em tom mais baixo:
— Tu sabes ler?
— Não.
— Humm… é pena… podias ajudar-me aqui numa frase que não consigo ler. Sabes, quando tinha a tua idade, não tive a sorte de poder ir para a escola todos os dias e aprendi só um bocadinho. Mas como tinha muita vontade, fui continuando a aprender sozinho. Mas há algumas palavras que não sei ler muito bem, e outras que não percebo, porque são novas. É por isso que demoro muitos dias, quer dizer… Bem… digamos que leio mais devagar. Mas… espera aí! Se não sabes ler, como é que descobriste que estou com o mesmo jornal?
— Porque há dois dias que vejo sempre a mesma imagem na parte de trás da página — respondeu Aboubacar.
— Tu és esperto, rapaz! — exclamou o Tio Assouf, passando-lhe a mão pela cabeça e soltando uma gargalhada jovial. De repente parou, com os olhos fixos em Aboubacar e disse-lhe, com um largo sorriso radioso:
— Como é que eu não pensei nisto mais cedo! TU é que vais aprender a ler e a escrever. E vamos ver se conseguimos que seja já na próxima semana! De manhã, escola. De tarde, logo se vê.
— Tio Assouf, eu tenho de trabalhar na oficina. É por isso que estou aqui!
— Não, Aboubacar. Aprender a ler e a escrever, a pensar sozinho e a compreender o que se passa à nossa volta é mil vezes mais importante. Até para trabalhar na oficina. Sabes fazer melhor as contas, percebes melhor o que fazes, podes ler e aprender coisas novas em livros e não demoras uma semana para ler um jornal de cinco folhas, como eu. Amanhã mesmo vou falar com o professor e logo se vê se podes ir para a escola normal ou juntar-te ao grupo de crianças cá do bairro a quem dá aulas em casa ao fim do dia. Anda, vamos jantar e contar tudo à Tia Esther.
A esposa de Assouf ficou radiante com a perspetiva de oferecer um futuro mais promissor a Aboubacar. Ela própria lamentava ter sido obrigada a ficar em casa e a ocupar-se unicamente das tarefas domésticas. Sentia que as raparigas não deviam ter um tratamento diferente dos rapazes. Por que razão não as mandavam à escola e as retiravam de lá quando eram precisas em casa? Se eram elas que iam ao mercado, que vendiam e faziam as compras? E dizia o que pensava em voz alta, sem vergonha do que pudessem pensar:
— As mulheres são tão capazes como os homens!
Decididamente, a família do Tio Assouf era muito diferente das normais, e não admira que Aboubacar se tivesse empenhado ao máximo em aprender avidamente tudo o que lhe ensinavam, quer fosse na escola ou na oficina, e escutasse com atenção as conversas de Assouf e da esposa e se começasse também a questionar sobre determinados assuntos.
Assim, de cada vez que fechava a oficina, que fora a de Assouf, Aboubacar nunca deixava de pensar nele e na esposa, e agradecia-lhes as oportunidades que lhe tinham dado.
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Naquele dia tão quente, Aboubacar ainda tinha tempo, antes do jantar, para se juntar aos amigos no largo, debaixo da árvore de mangas.
— Então, Abubacar, que tal o dia? — saudaram os amigos quando o viram chegar.
— Bebe uma cerveja — convidou-o Salit. — Com este calor, qualquer dia vais ter de comprar um ar condicionado para a oficina!
— Ar condicionado? Isso é para ti, que trabalhas para o estado…
— Sim, mas também não faz grande falta. À velocidade com que carimbam os papéis, não devem aquecer muito! — riu-se Aziz.
— Valia mais gastar o dinheiro num despertador. Passam o tempo a dormir, qualquer dia ainda ficam lá fechados de noite! — riu-se outro.
— Se o negócio continuar assim, precisava era de meter um… — começou Aboubacar.
— Olha, quem tem mais um em casa, sou eu.
— Vais ter outro filho?
— Não, tenho uma cunhada da sobrinha da minha mulher. Diz que o marido a tratava mal e resolveu fugir… Apareceu lá em casa cheia de nódoas negras, quase sem forças e lavada em lágrimas. Imaginem que caminhou dois dias inteiros. Vinha num estado miserável! A pena que metia!
— Coitada! Não consigo entender porque é que alguns maridos tratam tão mal as mulheres! Uma prima da Srª Maimouna, a que vende bolos no mercado, também fugiu para cá.
— Tratar mal? Mas as mulheres querem-se em casa a trabalhar e a ter filhos! E as filhas devem casar-se o mais depressa — ripostou o velho Suleiman.
— Porquê? Isso não é vida. Porque não hão de saber ler e escrever, ir à escola, trabalhar em qualquer lado, serem tratadas com respeito? São tão capazes como os homens. Olha a prima da Srª Maimouna. Tirou um curso de costura e agora trabalha em casa como costureira. Aprendeu a ler e consegue costurar a partir dessas revistas de costura modernas.
— Ora, lá vens tu com as tuas modernices, Abubacar — continuou Suleiman.
— Não são modernices. Vocês, Salit, não têm mulheres lá no escritório? E não fazem o mesmo trabalho?
— Sim, são da família do chefe. E… a verdade é que até não trabalham mal, quero dizer… bem… despacham as coisas mais depressa, lá isso é… E já que falas na prima da Srª Mamouna, a minha mulher já lá mandou coser uns tecidos e diz que não quer mais ninguém.
— Veem? Então?
— Pode ser, mas não acho bem. Só tive rapazes, mas se tivesse filhas…
— Pensavas de maneira diferente — atalhou rapidamente Abubacar.
— Ai, sim? Tu e as tuas ideias do costume. Se são tão boas como os homens, Abubacar, porque não metes nenhuma na oficina? — perguntou o velho Suleiman num tom desafiador.
— E porque não? Só porque ainda não me apareceu nenhuma.
Nesse momento, a mulher de Aboubacar chegou a correr.
— Aboubacar, desculpa, podes vir depressa para casa? Precisava de falar contigo.
— Aconteceu alguma coisa, Aida?
— Vem depressa. É a tua irmã Miriam.
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A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Os pequenos cavalos de vento

As histórias enviadas fazem parte de um ciclo em que a figura feminina aparecerá como elemento central
 
Os pequenos cavalos de vento*
Nessa noite, por baixo da manta, Dolma tomara uma decisão. No dia seguinte, partiria ao alvorecer com o seu iaque e subiria o estreito que leva ao grande lago sagrado Zhara Yuntso. Ficava longe e muito alto na montanha, mas fá-lo-ia, pela sua mãe doente. Arranjara muitos pequenos cavalos de vento que lançaria do cume para levarem as suas orações.
Antes do amanhecer, Dolma encheu o alforge com comida para a viagem: carne seca, bolas de tsampa** e chá de manteiga. Abraçou a mãe e saiu para a manhã fria. O ar glacial apanhou-a de surpresa. Cerrou os dentes, pegou na corda do seu iaque e afastou-se do acampamento que ainda dormia. Após algumas horas de marcha, levantou-se uma tempestade, mas Dolma descobriu uma gruta entre as inclinadas rochas que a rodeavam.
Vamos abrigar-nos!
No fundo da gruta, a menina encontrou uma estátua de Buda. Ajoelhou-se, murmurando uma súplica. Mas, de tão esgotada que estava devido à longa caminhada, adormeceu aos pés da estátua. E sonhou que estava na mão de Buda e sobrevoava imensas planícies verdes. Buda falava-lhe docemente, animava-a, tranquilizava-a. E apontou-lhe com o dedouma ermida perdida na montanha. Dolma acordou sobressaltada, com uma estranha frase a martelar-lhe na cabeça: "Desconfia do mel doce oferecido no gume da navalha."
Estava sozinha com o seu iaque e segurava na mão uma pequena flauta. Quando a levou aos lábios, dela saiu uma doce melodia. Nesse instante sentiu a presença de alguém…uma sombra que logo desapareceu. A menina correu para a entrada da gruta e viu um enorme e belo bharal***.
Espera! Não te vás embora! — gritou ela. — Tenho de ir até à pequena ermida no cimo da montanha. Ajuda-me!
Porque é que te hei de ajudar? — perguntou a cabra azul.
— Porque, sozinha, nunca conseguirei lá chegar! E tu és a rainha desta montanha.
— O que fazes aqui sozinha?
— A minha mãe está doente e já não temos remédios que a curem. E o meu pai está na aldeia. Vou ao desfiladeiro de Zhara enviar as minhas preces aos deuses. É a única coisa que posso fazer.
— Anda comigo — disse a cabra a sorrir. — O som da tua flauta tocou-me.
Montada no seu iaque, Dolma seguiu o bharal até ao pôr-do-sol. Outras cabras vieram-‑se-lhes juntar e, à chegada ao mosteiro, eram já um pequeno grupo. Dolma agradeceu a ajuda da cabra e quis oferecer-lhe a flauta. Mas aquela recusou:
— A flauta escolheu-te a ti. Adeus e boa sorte, pequena Dolma.
A divisão estava na penumbra. Dolma aproximou-se. Pela janela aberta viu um velho monge a rezar diante de um altar. Bateu suavemente à porta para não assustar o ermita.
— Boa tarde. Gostaria de passar aqui a noite. Prometo não incomodar.
— Entra, pequena, entra. Estava à tua espera! — disse o monge, retorcendo-se de um modo estranho.
Dolma viu que o seu olhar era maligno. Tossia e a cara desfigurava-se ao falar.
— Acomoda-te, grrr, fica à vontade. Trago-te já um pouco de chá e uns deliciosos bolinhos. Volto já, grrr
Que esquisito! — pensou Dolma.
Foi então que viu um prato cheio de raízes. Apanhou algumas e guardou-as no gorro. Do quarto para onde o monge tinha desaparecido vinha um cheiro a chá, mas também uns sons nada tranquilizadores. Dolma lembrou-se do sonho e das palavras de Buda. Levantou-se para ver melhor o que se passava. E o que viu deixou-a sem fala: um demónio! Invadiu-a um cheiro a podre. Não havia um minuto a perder!
Fugiu dali. Pegou no alforge e no seu iaque e correu tanto quanto as suas pequenas pernas o permitiram. Deixou-se cair atrás de um chorten**** e acariciou o iaque, tranquilizando-o.
— Escapámos por um triz, meu bom amigo. Mais um pouco e estaríamos agora entre aquelas coisas que estavam dependuradas no teto.
Dolma olhou à sua volta. A noite estava clara. O iaque apontou então com a cabeça para o cume da montanha.
— Tens razão! — suspirou Dolma — Afastemo-nos mais desse demónio.
Caminharam a bom passo, mas o frio era tão intenso que a menina deixou de sentir os pés. Parou ao abrigo do vento e o iaque deitou-se, com ela entre as suas patas. Dolma pegou na flauta, e a melodia que saiu aqueceu-lhe o coração. Adormeceu sorrindo, embalada pela respiração do animal. Ao despertar, um pequeno cavalo fitava-a com curiosidade.
Assustaste-me!
— Desculpa. O que fazes aqui?
— Vou para o desfiladeiro do lago sagrado. Vou oferecer as minhas orações.
Posso acompanhar-te porque para mim é fácil. Mas, primeiro, tens de me deixar comer algumas dessas raízes para me darem força.
Dolma deu-lhe os pedaços que apanhara em casa do monge. O cavalo depressa os comeu. E logo saíram a galope. Parecia à menina que estavam a voar. Andaram muito e iam tão depressa que logo viram o resplendor do sol refletido na superfície do lago dominado pelo majestoso Zhara Lhatse.
Oh, que fumo é aquele a sair da água?
— São as fontes quentes da montanha. Podes tomar banho lá, se quiseres.
Dolma entrou com prazer nas águas borbulhantes. Em seguida, continuaram o caminho e, após umas horas, chegaram ao desfiladeiro de Zhara. A menina pegou nos seus pequenos cavalos de vento, aproximou-os dos lábios e soprou com todo o amor e força que tinha dentro de si. Fechou os olhos e enviou-os em pensamento aos deuses.
A viagem de regresso durou muitos dias. Dolma orou todo o caminho até chegar à aldeia. Ao entrar na tenda, deparou com o pai, os irmãos… e a mãe sentados em volta do lume. Colocou a pequena flauta diante da estátua de Buda e atirou-se para os braços da mãe.
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Vocabulário:
*CAVALOS DE VENTO: pequenos papéis com a figura de um cavalo pintado que se lançam ao céu. O vento leva aos deuses as preces que se escrevem neles. Os cavalos de vento também podem ser de tecido, em forma de bandeirinhas de oração.
**TSAMPA: bolinhas muito nutritivas típicas do Tibete, confecionadas com feijão vermelho, grão-de-‑bico, lentilhas, milho, amendoim natural, mel puro, banana verde, soja em grão e trigo.
***BAHRAL: cabra de pelagem azul e cornos grandes que vive nas montanhas do Tibete.
****CHORTEN ou STUPA: monumento funerário que guarda as relíquias de um santo ou orações sagradas. Encontram-se por todo o lado, porque dão vida aos lugares à entrada das aldeias, ao lado dos mosteiros, nos desfiladeiros e nos vales.
Anne-Catherine de Boel
Los pequeños caballos del viento
Barcelona, Corimbo, 2009
(Tradução e adaptação)
 
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias