quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Programa Empréstimo de Manuais Escolares

O Agrupamento Vertical de Escolas Dom Paio Peres Correia encontra-se a dinamizar um programa de empréstimo de manuais escolares aos seus alunos, no âmbito da sua autonomia escolar.

Este programa de empréstimo de manuais escolares pretende assim constituir-se como uma alternativa à compra de livros escolares ou, pelo menos, contribuir activamente para a diminuição dos gastos dispendidos pelos agregados familiares.

Assim, vimos por este meio, solicitar a divulgação desta iniciativa nos vossos meios de comunicação, apelando à participação dos Pais e Encarregados de Educação através da entrega na Recepção da Escola Dom Paio Peres Correia, de manuais escolares que já não necessitem e que se encontrem em bom estado. Esta iniciativa pretende contribuir activamente para o sucesso escolar dos nossos alunos!


O Director do Agrupamento,
Prof. Rui Domingos

sábado, 27 de agosto de 2011

Ali e a máquina fotográfica

 
Ali vive em Istambul, uma grande cidade da Turquia. A sua casa fica num prédio antigo, perto da famosa Mesquita Azul. Depois das aulas, Ali vai para casa e senta-se à janela a contemplar os barcos que se fazem ao mar.
— O que estás a fazer? — pergunta-lhe a mãe.
— Estou a fotografar estes barcos — responde Ali.
A mãe olha para o filho e ri.
— A fotografar? Mas como podes tu fotografar, se nem sequer tens máquina?
— Isso sei eu, mãe! Por isso estou a tirar fotografias com a minha cabeça, que é onde as posso ver.
Ali aponta um sítio junto dos olhos e a mãe ri de novo.
— Deixa-te de brincadeiras e vai para a loja do teu pai! — diz ao filho.
O pai de Ali vende legumes e frutas e o rapaz trabalha na loja depois da escola.
— Não te mexas! Fica junto da porta — diz Ali, de repente, quando chega junto do pai.
— Porquê? — pergunta este.
— Quero tirar-te uma fotografia!
O pai sorri.
— Uma fotografia? Primeiro, tens de arranjar uma máquina. Depois, podes tirar-me uma fotografia.
— Compra-me uma máquina, pai! — pede Ali.
O sorriso do pai desvanece-se.
— Não tenho dinheiro para máquinas… — diz, devagar.
Todas as tardes, Ali vai passear na parte velha de Istambul, e observa as casas construídas junto da água. Algumas são muito velhas. Depois, olha para os homens que estão na ponte a pescar. Por fim, dirige o olhar para os barcos. E fotografa tudo com a mente. "Como hei-de arranjar uma máquina?", pensa. De repente, a resposta surge-lhe. "Já sei, vou trabalhar no mercado!"
Perto da escola de Ali existe um mercado velho, com pequenas lojas onde se compra e vende comida. Todas as tardes, depois da escola, o rapaz dirige-se para lá. Trabalha sempre com um sorriso, carregando os sacos dos clientes. As pessoas gostam dele e dão-lhe algum dinheiro, que Ali logo mete no bolso.
— Um dia vou ter muito dinheiro — diz à mãe. — Depois, compro uma máquina e tiro-te uma fotografia na cozinha.
— Na cozinha não! — diz a mãe. — Tiras-me uma na varanda, com o teu pai.
— Na varanda não! — diz o pai. — Na minha loja.
Uma tarde, Ali carrega um saco pesado para um cliente idoso.
— Está um homem a seguir-nos — diz o velhote. — Conhece-lo?
Ali olha para o homem alto e forte atrás deles e responde:
— Não, não conheço. Não trabalha no mercado.
— Toma bem conta do meu saco. Talvez seja um ladrão! — diz o cliente.
Ali pensa no dinheiro que tem no bolso e sugere:
— Vamos caminhar mais depressa.
— Eu não posso andar mais depressa. Tu sim, que és novo! — queixa-se o velho.
De repente, o homem alto e forte agarra no saco que Ali transporta e desata a fugir. O rapaz vai atrás dele, mas o ladrão agride-o. Ali cai e o dinheiro sai-lhe do bolso. O homem pousa o saco, pega no dinheiro e foge. Ali devolve o saco ao velhote.
— Muito obrigado. És um rapaz muito bondoso — agradece o cliente.
Ali fica triste, mas não fala do dinheiro que perdeu. Nessa noite, nem sequer conta o sucedido aos pais. "Posso sempre recomeçar", pensa.No dia seguinte, está de novo no mercado, à espera de trabalho, no meio da algazarra. De repente, uma senhora de idade vem ter com ele e pede:
— Podes carregar estes dois sacos para mim? Vivo junto da estátua de Ataturk.
Enquanto Ali transporta os sacos, a senhora pergunta:
— São muito pesados?
— Não para mim, que sou forte! — responde Ali.
Chegam, por fim, junto da estátua de Ataturk. A senhora comenta:
— Lembro-me de Ataturk, porque foi um homem muito importante para a Turquia.
— Posso tirar-lhe uma fotografia junto da estátua — oferece-se Ali.
— E onde está a tua máquina fotográfica? — admira-se ela.
— Não tenho — diz Ali.
A senhora olha para ele e sorri.
— Tira lá a minha fotografia sem máquina. Mas primeiro, deixa-me arranjar o cabelo.
Chegam à rua onde a cliente vive e o rapaz carrega os sacos até ao andar dela. É um andar espaçoso, cheio de fotografias.
— Quanto dinheiro queres? — pergunta a senhora.
— Quanto dinheiro me quer dar? — returque ele.
— Senta-te e espera — pede a cliente.
Dirige-se a um pequeno quarto e volta com uma máquina fotográfica nas mãos.
— Esta foi a primeira máquina do meu filho. Fica com ela — oferece.
Ali fixa a máquina durante um bom bocado. Por fim, pega nela, mas logo a devolve.
— É uma máquina muito bonita, mas não posso ficar com ela.
A senhora pega na mão do rapaz e coloca a máquina nela.
— O meu filho já não a quer, porque agora tem uma nova.
— Como posso agradecer-lhe? — pergunta Ali.
— Volta cá um dia e tira-me uma fotografia. Uma fotografia a sério. E, agora, aqui tens o dinheiro de hoje.
— Não posso aceitar dinheiro algum! Mas posso transportar os seus sacos outra vez — diz Ali.
— És um bom rapaz. Lembra-te do meu nome: Sra. Yildiz.
— Não me esquecerei, Sra. Yildiz.
— Adeus, Ali. Tira boas fotografias com a máquina do meu filho.
Ali corre para casa e conta à mãe o que aconteceu.
— A máquina funciona? quer saber a mãe.
— Claro que funciona. Vou agora mesmo tirar-te uma fotografia.
— Mas nem tem rolo, filho.
A mãe dá-lhe algum dinheiro e diz:
— Vai comprar um rolo que eu vou comprar um vestido novo. Depois, tiras-me uma fotografia.
— Obrigado, mãe! Mas eu quero comprar rolos com o meu dinheiro e não com o teu.
♦♦♦♦
E Ali continua a trabalhar todos os dias no mercado, depois das aulas, e chega tarde a casa. "Esta vida é bem difícil", pensa. "As pessoas trabalham muito e recebem pouco." Mas chega o dia em que já tem dinheiro suficiente para comprar um rolo. "Agora já posso tirar fotografias a sério", diz para consigo. Lembra-se da Sra. Yildiz e vai até casa dela. Quando ela abre a porta e o vê, fica muito contente. Ali diz:
— Quero tirar-lhe uma fotografia.
Vão até à cozinha, onde um homem alto bebe café.
— Este é o meu filho Yusuf. Tira-nos uma fotografia aos dois. Senta-te junto de mim, Yusuf.
— Sorriam, por favor — pede Ali.
— O Yusuf trabalha num jornal e pode ensinar-te a tirar fotografias — diz a Sra. Yildiz.
Ali fita Yusuf e pergunta:
— Pode? É que eu quero aprender a tirar boas fotografias.
Yusuf sorri.
— Tira algumas fotografias por aí e depois aparece no jornal a mostrar-mas.
— Vou tirar o máximo que puder. Tenho-as todas na minha cabeça — diz o rapaz.
Ali passeia pelas ruas de Istambul que, de repente, lhe parece uma cidade muito bonita. Tira fotografias de pontes, de barcos e de mesquitas antigas. Também tira fotografias de pessoas nas ruas e nas lojas. Um dia, decide ir até ao jornal falar com Yusuf. Yusuf contempla as fotografias e diz:
— Bem, não estão mal...
— Não estão mal? — admira-se Ali.
— Não, as tuas fotografias não estão mal.
— Não estão boas? — insiste o rapaz.
— Algumas estão, mas outras não — diz, sincero, Yusuf.
Ali fica aborrecido e pede as fotografias de volta. Yusuf não percebe a atitude do rapaz. Este regressa a casa e conta à mãe o que aconteceu.
— Não foste muito inteligente, filho. Não és propriamente um fotógrafo famoso...
Ali sente-se triste consigo mesmo.
— Às vezes, abro a boca e falo sem pensar.
— Vai ter com Yusuf e pede-lhe desculpa.
— Agora não me sinto capaz. Estou zangado.
Ali deambula pelas ruas e vai-se perguntando: "Porque me afastei de Yusuf? Não foi uma atitude correcta. Porque não pensei primeiro? Porque...?"
De repente, repara numa pequena loja de fotografia. Entra e vê um idoso sentado a uma mesa. O nome dele é Selim e tem uma cara prazenteira.
— Gosto muito da sua loja. Tem máquinas bonitas. Queria trabalhar consigo — diz Ali.
— Mas eu não posso pagar-te — explica o velho.
— Não quero dinheiro. Quero aprender a tirar fotografias. Por favor, veja as minhas — pede o rapaz.
Selim observa-as e comenta:
— Cada um de nós vê através dos seus olhos. Mas os bons fotógrafos vêem as coisas através da lente da máquina.
E Ali começa a sua aprendizagem. Primeiro tira fotografias de pessoas. Depois fotografa portas e janelas.
— As portas e as janelas também têm vida — explica Selim.
Na cidade, há sempre muitas crianças a trabalhar nas lojas, ou a vender fruta, bebidas frescas e jornais nas ruas. Essas crianças sorriem com a cara mas não com os olhos. Ali mostra as fotografias a Selim.
— Gosta delas? — pergunta.
— Gosto. Estás a aprender. Estás a aprender a fazer fotografias.
— Quando poderei vendê-las a um jornal? — quer saber o rapaz.
— Espera... — aconselha Selim.
Ali continua a trabalhar no mercado depois das aulas, porque precisa de rolos para a máquina. E também aproveita para tirar fotografias das pessoas que frequentam o mercado. Numa manhã de sábado, bem cedo, vê algumas crianças em cima duma ponte. Têm olhos grandes e tristes e estão a pescar. Ali fotografa-as. Depois, vai até ao andar de Selim, na parte velha da cidade, e mostra-lhe a fotografia das crianças na ponte. Selim contempla-a durante muito tempo.
— Isto sim! Estás a aprender depressa.
— O senhor é muito meu amigo. É um autêntico professor!
— Gosto de te ensinar. És como um filho para mim — diz o idoso.
♦♦♦♦
Certo dia, Ali vê a Sra. Yildiz, mas afasta-se rapidamente.
— Ali, Ali, porque foges? — pergunta ela.
Ali detém-se.
— Eu sou muito orgulhoso… O Yusuf contou-lhe o que aconteceu?
E Ali relata o sucedido no jornal...
— Estou muito arrependido!
— Não sei do que estás a falar. Só sei que uma das tuas fotografias vem hoje no jornal.
— Uma fotografia minha no jornal? Qual delas?
— Uma com duas crianças numa ponte a pescar um grande peixe.
— Estou tão contente, Sra. Yildiz! — diz Ali, e ri, satisfeito. — Posso levar os seus sacos?
— Não, obrigada. Vai para casa.
O rapaz corre para a loja de Selim.
— A minha fotografia saiu no jornal!
— Saiu, pois. Ora vê só — diz Selim, mostrando-lhe o jornal.
— Mas... não percebo. Como foi ela aí parar? Foi o senhor que a mostrou ao Yusuf!
Selim sorri e diz:
— Mas olha que não podes parar de aprender!
— Tem toda a razão! — concorda Ali.
— Amanhã é um dia muito importante para ti — continua Selim.
— Não percebo — diz Ali.
— O jornal tem uma vaga para um estágio de fotografia. E o estagiário és tu. Amanhã começas um novo trabalho!
E desatam os dois a rir.
Raymond Pizante
Ali and his camera
Essex, Penguin Books, 2000
(Tradução e adaptação)

A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Escrava


A propósito do Dia Internacional da Recordação do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, dia 23 de Agosto
ESCRAVA
Tem dez anos, é negra, e há muito que deixou de ter nome.
Capturada em África e embarcada com destino à América,
é vendida num mercado da Venezuela.
Baptizada Ana, trabalha duramente e vai-se adaptando à sua nova vida,
na qual aprende depressa, demasiado depressa…
Muitos têm ciúmes dela e, um dia, acusam-na de algo que não fez.
Chicoteada e humilhada, Ana decide fugir.
Mas reencontrar a liberdade vai revelar-se uma luta bem difícil…
Nos finais do século XVIII, a Venezuela, então uma colónia de Espanha, contava com cerca de 60.000 escravos, trazidos de África em navios espanhóis, portugueses, ingleses e franceses.
Todos os anos, mais de mil Africanos desembarcavam em La Guaira, o principal porto do país, para aí serem vendidos. Os colonos venezuelanos usavam-nos para pescar pérolas no fundo do oceano, extrair minérios da terra, desbravar selva, plantar café e cacau, e assegurar todas as tarefas domésticas.
Tal como acontecia no resto da América, os escravos venezuelanos eram tratados com crueldade. Para escaparem à sua triste condição, alguns não hesitavam em revoltar-se e fugir, instalando-se em regiões afastadas do país, ainda muito despovoado.
Sobre o cais alinhavam-se filas de Africanos, seminus. Todos piscavam os olhos, aturdidos que se sentiam por verem luz após semanas de obscuridade num porão de navio. Para que tivessem um ar mais atraente como mercadoria, tinham sido lavados e oleados, e as suas feridas curadas à pressa. Apesar disso, os boçais[1], como eram denominados os escravos acabados de desembarcar dos navios negreiros, tinham um ar bastante miserável.
A travessia horrível, no decurso da qual muitos haviam morrido, tinha-os tornado mais fracos, doentes e desesperados. Alguns eram amparados pelos companheiros, e uma jovem grávida estava estendida no pavimento, completamente esgotada. Meia dúzia de crianças, um pouco afastadas, observavam, com olhos assustados e admirados, este Novo Mundo.
No seio do grupo apavorado, estava uma menina de cerca de dez anos, que parecia alheada de tudo o que a rodeava. A sua cara bonita, emagrecida por todas as provações que sofrera, tinha um ar totalmente ausente, e esta impassibilidade ainda a tornava mais patética do que os outros. Não manifestou qualquer tipo de emoção quando o traficante a puxou pelo braço para a apresentar a um homem muito moreno, cujos traços duros eram pontuados por um fino bigode.
― Leve esta miúda, senhor. Não posso baixar o preço do lote, mas dou-lha de graça.
― É muito magrita! ― protestou o homem. ― E nem sequer parece acordada.
― Ouça, señor Ricardo, é pegar ou largar. Os três homens são robustos e as duas mulheres são jovens e sadias. Cinco belas “peças” por mil e duzentos pesos, com a miúda a completar, eis o que eu chamo um belo negócio!
O homem chamado Ricardo fingia hesitar, enquanto observava a rapariguinha sem qualquer piedade. Don José Mijares de Solapado y Pacheco, de quem era intendente, tinha necessidade de novos criados e tinha-o incumbido de comprar alguns boçais. O intendente tinha viajado de propósito de Caracas, a capital, que ficava para lá das montanhas, a fim de assistir à chegada desta carga.
Claro que iria comprar o lote. Era preciso aproveitar a ocasião. À parte a miúda, tinha seleccionado os melhores exemplares e tinha negociado um bom preço. Don José ficaria satisfeito.
― Está bem ― disse lentamente. ― Põe a miúda junto dos outros.
Os seis boçais foram colocados na casa principal de Don José, a fim de se habituarem à língua. Também era preciso saber quais deles estariam aptos para o serviço doméstico. Após algumas semanas, foram mandados embora dois homens e uma mulher, que se mostravam rudes e teimosos. Enviaram-nos para uma plantação de café, onde o chicote do capataz os poria no lugar.
Eram precisos escravos dóceis e inteligentes para o serviço da casa. Só ficaram com um dos homens, que parecia ter jeito para a jardinagem, e com uma mulher, que confiaram à cozinheira, também ela negra. A miúda, que os medos e os sofrimentos passados pareciam ter estupidificado, ficou também na casa. Era demasiado débil para trabalhar no campo.
As criadas tentaram conquistá-la, mas ela parecia um animal acossado num canto. Quase não pegava na comida que lhe davam. Na casa, havia escravos de várias origens, e todos os que ainda se lembravam do seu dialecto africano tentavam falar com ela. A cozinheira, a ama, a criada de passar a ferro, um criado, todos tentavam fazê-la falar.
Mas a rapariga não reagia. Parecia nada compreender e olhava-os apenas com uns belos olhos cheios de medo. A sua existência passada parecia-lhe agora extremamente longínqua. Lembrava-se do pesadelo que fora a invasão da aldeia por guerreiros inimigos, e a morte do chefe, seu pai, durante a batalha.
Depois, tinham sido feitos prisioneiros e forçados a caminhar durante dias a fio: ela, a mãe, os dois irmãos, e muitos outros. Separaram os homens das mulheres e os irmãos desapareceram. A mãe e ela tinham ficado fechadas numa casa abafada, juntamente com outras mulheres, antes de embarcarem numa horrível prisão flutuante, onde eram guardadas por homens brancos.
Quase todos os prisioneiros, acorrentados e amontoados no porão abafado do navio, tinham enjoos horríveis. O cheiro de vómito e de excrementos era insuportável e a escuridão ressoava de lágrimas, gritos e gemidos. Contudo, após alguns dias de travessia, Ana tinha-se sentido um pouco melhor, e tinha engolido um pouco da ração que lhes davam duas vezes por dia.
A mãe não comia, porém. Tinha o corpo a arder, os olhos sempre fechados, e era violentamente sacudida por tremuras que a filha tentava em vão acalmar, apertando-a nos bracitos magros. Nem conseguia pensar no que sucedera depois. Com um olhar cansado e os lábios gretados, a mãe murmurara:
― Não te esqueças, minha filha, de que o teu pai era um grande chefe. Sê corajosa, como ele.
 ― Prometo! ― dissera a filha.
Quando ouviu a respiração fraca da mãe transformar-se num gemido assustador, e sentiu o seu corpo acolhedor e quente transformar-se em algo de rígido e frio, a coragem abandonou-a e a noite apoderou-se do seu espírito. O mundo em redor tornou-se confuso e obscuro, como se as máscaras sagradas da sua aldeia a tivessem conduzido às profundezas da floresta interdita, onde só reinava o caos e as trevas.
Não se lembrava do que acontecera em seguida. Mesmo o sol e o ar livre não conseguiram libertá-la da noite permanente em que estava mergulhada.
Pascale Maret
Esclave !
Toulouse, Milan Poche Junior, 2007
(Tradução e adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

[1] Os “boçais” eram escravos negros, recém-chegados de África, e desconhecedores da língua do país. (N.T.)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Palavras em vão


Um nobre dinamarquês levou muito tempo a regressar ao seu país, depois de uma peregrinação à Terra Santa. Na viagem soube de muitas histórias, entre as quais a da morte, na costa africana, de um nativo e de um marinheiro português. Aconteceu que, no contacto entre eles, as palavras lhes faltaram, e não entenderam os gestos um do outro. Então, em movimentos defensivos, mataram-se com as próprias armas.
Um dia, o cavaleiro teve desejo de ir mais longe, de ir até às terras desconhecidas que surgiam do mar. Então resolveu alistar-se nas expedições portuguesas que navegavam para o sul à procura de novos países. Veio a Lisboa e aí embarcou numa caravela que partia a reconhecer e a explorar as costas de África. Seguiram das margens do Tejo para as Canárias, onde pararam alguns dias. Depois continuaram viagem, aproximaram-se da terra africana, dobraram o cabo Bojador e seguiram, à vista das costas desertas, queimadas pelo sol, sem árvores, e sem homens. Junto ao cabo Branco ancoraram o navio num abrigo formado por altos penedos.
Então, homens de pele sombria, envolvidos em mantos flutuantes e montados em camelos, vieram à orla da praia negociar com os portugueses. E as caravelas continuaram a navegar para o sul, muito para o sul. Uma brisa constante inchava as grandes velas e os mastros e os cabos gemiam docemente. Até que, para além das intermináveis costas nuas e vazias, sem árvores e sem sombra, surgiram as primeiras palmeiras.
Depois começaram a aparecer espessas e verdes florestas que cobriam toda a terra desde as praias brancas até aos distantes montes azulados. E dessas florestas surgiram homens nus e negros que embarcavam em pirogas e rodeavam os navios. Os marinheiros portugueses traziam ordem de se entenderem com eles. Mas isto era difícil. Em geral, as pirogas não chegavam ao alcance dos navios e outras vezes mesmo os negros desapareciam entre o arvoredo mal as caravelas ancoravam. Então os marinheiros que desembarcavam eram recebidos com flechas envenenadas dos homens escondidos.
Porém, havia paragens onde os africanos e os portugueses já se conheciam e negociavam. E às vezes, em lugares da costa onde nunca um navio tinha parado, acontecia serem acolhidos com festa e alvoroço. Então, bailando e cantando, os negros vinham ao encontro dos navegadores que, para corresponderem ao bom acolhimento, bailavam e dançavam também à moda da sua terra.
Mas o entendimento entre ambas as partes, muita vez, pouco mais avançava, pois uns e outros não entendiam as respectivas linguagens e mesmo os intérpretes berberes não conheciam a fala usada em tão longínquas paragens. Este desentendimento das línguas foi a causa de muitas mortes e combates.
Assim um dia a caravela ancorou em frente duma larga e bela baía rodeada de maravilhosos arvoredos. Na longa praia de areia branca e fina um pequeno grupo de negros espreitava o navio. Então o capitão resolveu mandar a terra dois batéis com homens para que tentassem estabelecer contacto com os africanos. Mas logo que os batéis tocaram na areia os negros fugiram e desapareceram no arvoredo.
— Talvez tenham tido medo por ver que nós somos muitos e eles são poucos — disse um português chamado Pêro Dias.
E pediu aos seus companheiros que lhe deixassem um batel e embarcassem todos no outro e se afastassem da praia. Mas os companheiros acharam este plano tão arriscado que não o quiseram aceitar. Porém, Pêro Dias insistiu tanto que eles acabaram por fazer como ele pedia e remaram para o largo. O português, mal ficou sozinho, caminhou até meio da praia e ali colocou panos coloridos que tinham trazido como presente. Depois recuou até à orla do mar, encostou-se ao batel que ficara e esperou.
Ao cabo de algum tempo saiu da floresta um homem que trazia na mão uma lança longa e fina e avançava negro e nu na claridade da praia. Avançava passo por passo, lentamente, vigiando os gestos do homem branco que junto do batel continuava imóvel. Quando chegou perto dos panos, parou e examinou com alvoroço a oferta. Depois ergueu a cabeça, encarou o português e sorriu. Este sorriu também e avançou uns passos. Houve uma pequena pausa. Depois, num acordo mútuo, os dois homens, sorrindo, caminharam ao encontro um do outro. Quando entre eles ficaram só seis passos de distância, pararam.
— Quero paz contigo — disse o branco na sua língua.
O negro sorriu e respondeu três palavras desconhecidas.
— Quero paz contigo — disse o branco em árabe.
O negro tornou a rir e tornou a repetir as palavras ininteligíveis.
— Quero paz contigo — disse o branco em berbere.
O negro sorriu de novo e mais uma vez respondeu as três palavras exóticas. Então Pêro Dias começou a falar por gestos. Fez o gesto de beber e o negro apontou-lhe a floresta. Fez o gesto de comer e o negro apontou-lhe a floresta. Com um gesto de convite o marinheiro apontou o seu batel. Mas o negro sacudiu a cabeça e recuou um passo. Vendo-o retrair-se, o português, para voltar a estabelecer a confiança, começou a cantar e dançar. O outro, com grandes saltos, cantos e risos, seguiu o seu exemplo. Em frente um do outro bailaram algum tempo.
Mas no ardor do baile e da mímica Pêro Dias ergueu no ar a sua espada, que faiscou ao sol. O brilho assustou o nativo, que deu um pulo para trás e estremeceu. Pêro Dias fez um gesto para o sossegar. Mas o outro começou a fugir, e o navegador precipitou-se no seu encalço e agarrou-o por um braço. Vendo-se preso, o negro principiou a debater-se, primeiro com susto, depois com fúria. Com gritos roucos e sílabas guturais respondia às palavras e aos gestos que o tentavam apaziguar. Ao longe, no mar, os companheiros de Pêro Dias avistaram a luta e principiaram a remar para a praia. O negro viu-os a aproximarem-se, julgou-se cercado e perdido e apontou a sua lança. Pêro Dias com a espada tentou aparar o golpe mas ambos caíram trespassados. Os portugueses saltaram do batel e correram para os corpos estendidos. Do peito do negro e do branco corriam dois fios de sangue.
— Olhem — disse um moço — o sangue deles é exactamente da mesma cor.
De bordo veio o capitão com mais gente e todos durante uma hora choraram o triste combate.
O sol subia no céu e aproximava-se o calor do meio-dia. Não sabendo quando voltariam a desembarcar, o capitão resolveu não levar para bordo o cadáver de Pêro Dias. Os dois corpos foram sepultados ali mesmo, na praia. E com a lança do gentio e a espada do cristão, os marinheiros fizeram uma cruz, que espetaram na areia entre os túmulos dos dois homens mortos por não poderem dialogar.
Chegado a este ponto da sua narrativa, o capitão flamengo calou-se uns momentos olhando o lume. O negociante serviu de novo vinho aos seus hóspedes e até altas horas continuaram a ouvir o marinheiro da Flandres contando as longínquas viagens, as ilhas desertas, as árvores descomunais, as tempestades, as calmarias, os povos misteriosos. No dia seguinte o Cavaleiro disse ao negociante que queria seguir por mar para a Dinamarca.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001
(adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O homem que ficou sem sono

Era uma vez um homem que um dia ficou sem sono. Queria dormir, mas não conseguia, apesar de sempre ter dormido bem. Quando fechava os olhos, não lhe saía da cabeça a tristeza que havia no olhar das crianças que se apinhavam junto da porta da casa onde morava e trabalhava. Era um homem bom que gostava do que fazia e que fora educado para obedecer às ordens dos seus superiores, estivesse onde estivesse. Nunca lhe passara sequer pela cabeça a possibilidade de um dia vir a infringir essa regra.
Esta história é verdadeira e aconteceu poucos dias antes de começar o Verão do ano de 1940. Ainda há muita gente viva que se lembra bem desse homem e daquilo que ele fez, deixando de pensar em si e pensando nos outros e na sua salvação. O homem era diplomata e nascera no norte de Portugal. Chamava-se Aristides de Sousa Mendes, era casado e tinha vários filhos. A sua carreira como cônsul levou-o até à cidade francesa de Bordéus, onde lhe chegaram as primeiras notícias do começo da Segunda Guerra Mundial quando as tropas alemãs atacaram a Polónia e a Inglaterra se opôs a essa agressão, em defesa da liberdade e da democracia, declarando que faria frente, pelas armas, aos agressores.
O homem era pessoa de bem e defensor da paz. Não podia aceitar a ideia de que alguém pudesse ser perseguido, torturado e morto só por ter ideias políticas diferentes ou outra religião. Fora educado para a tolerância e por isso respeitava os direitos dos outros. À medida que as tropas alemãs invadiam países como a Bélgica ou a Holanda e se aproximavam da fronteira francesa, iam chegando a Bordéus refugiados das nações ocupadas, em busca de um visto no passaporte que lhes permitisse chegar a Espanha e depois a Portugal, apanhando mais tarde, em Lisboa, um barco ou um avião que os levasse para países como os Estados Unidos da América, o Brasil ou a Argentina, onde não havia guerra. Portugal e Espanha, governados por ditadores como Hitler, o senhor da Alemanha, não tinham entrado na guerra e iriam manter-se à margem dela, embora durante muito tempo tenham estado ao lado dos alemães e do que eles representavam.
O homem queria dormir, mas não era capaz. Ecoavam-lhe na cabeça as vozes das crianças que sofriam de fome e de sede e que, lembrando-lhe os seus filhos, tinham o direito de viver e de crescer em liberdade. De Lisboa, o cônsul português recebera ordens muito rigorosas no sentido de não deixar chegar refugiados a Portugal. Pensou e voltou a pensar, consultou a mulher e escreveu uma longa carta aos filhos explicando o que tencionava fazer e as razões dessa opção. Espreitou pela janela e viu nos olhos das crianças um sorriso fugidio que representava a última réstia de esperança. Por elas valeria a pena arriscar. Por elas e pelos princípios que defendia. Foi assim que a palavra «desobediência» entrou definitivamente no seu vocabulário. Mandou abrir as portas do Consulado de Portugal e forneceu aos funcionários carimbos e selos brancos para poderem emitir o maior número de vistos possível. A partir desse momento seria uma batalha sem tréguas contra o tempo. Cada minuto contava. Cada dia parecia uma eternidade.
Durante três dias não houve descanso para ninguém dentro do Consulado, e ainda sobrou tempo para se dar água e comida àqueles que esperavam à porta em intermináveis filas, com a esperança de que o pesadelo por fim terminasse. Pela rádio chegavam notícias da rendição da França, o que significava que já faltava muito pouco para que as tropas de Hitler chegassem também a Bordéus, perseguindo e prendendo judeus e opositores políticos ao regime nazi. Era preciso actuar ainda mais depressa. O cônsul conseguiu arranjar tempo para ir às cidades de Bayonne e Hendaye onde havia um grande número de refugiados tentando passar a fronteira em direcção a Espanha. Aristides de Sousa Mendes sabia que o desrespeito pelas ordens de Lisboa teria consequências dramáticas para o seu futuro e da sua família. Ainda assim, não recuou. Sabia que a razão estava do seu lado e não estava disposto a abdicar dessa razão, que correspondia à salvação de milhares de vidas.
            — Mãe, tenho fome e sede e quero sair deste sítio — dizia a menina austríaca para a mãe pálida e exausta.
            — Talvez amanhã de manhã já possamos estar a caminho da liberdade, porque há ali dentro um homem bom que nos quer ajudar.
            O homem não se deixou vencer pelo cansaço, pelo sono, pela fome ou pela sede. A vida dos outros estava primeiro. Se eles tinham pressa, a sua conseguia ser ainda maior. No Consulado, houve quem o avisasse: «O senhor bem sabe o que lhe pode acontecer!» Mas ele não quis saber e continuou a passar vistos, perdendo a conta às pessoas que já tinha conseguido salvar. Terão sido dez mil, quinze mil ou trinta mil? Não se sabe ao certo. Sabe-se sim que chegaram a Lisboa e que depois foram encaminhados para o Estoril, para a Ericeira, para a Figueira da Foz ou para as Caldas da Rainha. Mais tarde, a maioria conseguiu partir para países onde havia liberdade. Alguns voltaram depois do final da guerra às suas terras, outros nunca mais as quiseram ver porque não conseguiram esquecer as horas de sofrimento e perda. Três dias bastaram para que o cônsul Aristides de Sousa Mendes abrisse a milhares de refugiados as portas para a liberdade, desob edecendo a Salazar e ao regime que ele dirigia. Por isso foi prontamente banido da carreira diplomática e proibido de exercer qualquer actividade profissional, morrendo na miséria em 1954, com os filhos dispersos por países como os Estados Unidos, onde puderam estudar e seguir as suas carreiras. Num dia quente de Junho de 1940, no Rossio, em Lisboa, um menino de cabelo loiro perguntou aos pais, enquanto estes procuravam uma pensão ou um hotel onde se pudessem instalar até conseguirem arranjar bilhetes num barco ou num avião para Nova Iorque:
            — Como é que se chama aquele senhor que, em Bordéus, nos passou os vistos para podermos chegar a este país?
            O pai, não contendo uma lágrima comovida, respondeu-lhe:
            — Chama-se herói, filho. Quem faz o que ele fez por nós só pode ter esse nome.
Ainda não houve um grande realizador de cinema que fizesse um filme sobre esta história verdadeira, à semelhança do que Steven Spielberg fez com Oskar Schindler, mas pode ser que ainda venha a ser feito. Nunca é tarde para celebrar os feitos dos heróis.
Naquelas noites quentes de Junho de 1940, havia em Bordéus um português que não conseguia dormir. Não lhe saía da memória a aflição das crianças que queriam ver abrir-se a porta que as deixasse seguir o caminho até à liberdade. Essa porta abriu-se e por ela passou uma réstia de luz, desenhando no cetim negro do céu, entre as estrelas, a linda palavra «Esperança», escrita em português como esta história verdadeira que é sempre bom contar e recontar.
Porquê? Porque é sempre possível que a tragédia volte a acontecer, onde e quando menos se espera.
José Jorge Letria
AAVV
Contos de um Mundo com Esperança
Lisboa, Texto Editora, 2003
(adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Carta Aberta a um Jovem

Caro Jovem
Não há nada de antiquado no facto de procurares comportar-te com dignidade nas tuas relações com o sexo oposto. O teu corpo não é um objecto, nem um qualquer mecanismo que não possas controlar.
Numa relação, o afecto é muito mais importante do que o sexo. A falta de carinho leva a que as pessoas acabem por se tornar agressivas uma com a outra. Nunca te precipites. Os contactos sexuais não te farão mais próximo de quem julgas gostar.
É uma grande ilusão confundir-se atracção física com amor. Deixa as experiências sexuais para quando tiveres uma relação verdadeiramente madura, ou podes ter a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, tudo se desmoronará. Não coloques o prazer à frente do carinho e do respeito. Deixa que o tempo exerça a sua acção. Já experimentaste comer um fruto ainda verde?
Fala-se muito de amor, quando, na maior parte dos casos, tudo não passa de aparência. Não antecipes experiências que só devem ser vividas quando houver respeito e ternura bastantes para tornarem sólida uma relação. De outra forma, apenas encontrarás o vazio.
A precipitação pode ter consequências sérias: uma gravidez não planeada, por exemplo. Interrompe-se a gravidez, dirás tu. E achas correcto matar uma vida, sobretudo quando foi a tua irresponsabilidade que a criou?
Não te esqueças também das doenças transmissíveis por via sexual, e do enorme sofrimento que poderão causar. Relações sexualmente protegidas serão a solução, pensarás. Pois convence-te de que a solução consiste em te tornares interiormente adulto e responsável, e aprenderes a agir com rectidão e dignidade.
O ser humano não é um animal irracional que actua impelido pelo cio. É um ser pensante e criativo, com capacidade de escolha e de decisão, e que tem o dever de reflectir sobre os seus actos.
Os muitos filmes e novelas incessantemente despejados na cabeça das pessoas distorcem o sentido da conduta humana, induzindo à vulgaridade e à imitação de comportamentos grosseiros, quando não claramente anti-éticos.
Deves desenvolver o teu espírito crítico, para não te limitares a ser mais uma ovelha de um imenso rebanho obtuso e amorfo, que se deixa conduzir por qualquer um.
Não esqueças que a vida é uma oportunidade demasiado preciosa para a desperdiçares com caprichos e fantasias. Procura a justiça e tenta contribuir para uma sociedade melhor.
Com o desejo sincero de que sejas feliz.
Anónimo
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias