sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Saudações Bibliotecárias



A Equipa da Biblioteca Escolar e Centro de Recursos Educativos do Agrupamento Vertical de Escolas Dom Paio Peres Correia deseja a toda a comunidade escolar e seus familiares, a todas as BECRE's e a todos os utilizadores deste blogue, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.

Recital de Natal 2009


Cenário elaborado pelas turmas do Professor Nuno Ezequiel




5ºA na voz, acompanhados pelas flautas do 6ºA e 6ºB



Professor Domingos Ramalho (clarinete) acompanhado pelo Professor Luís Conceição (piano)




6ºC



Alunos do 6ºE sob a orientação do Professor Luís Macieira



6ºA e 6ºB na interpretação de Haendel, com acompanhamento de clarinete e piano



5ºA



Uma audiência atenta

O Grupo de Educação Musical agradece a toda a comunidade escolar envolvida o apoio prestado na organização deste evento, com especial destaque para as professoras Emília Padinha, Rosa Rogado, Ana Francisco, Carla Silva e Carla Viegas, por terem cedido as turmas para os ensaios em conjunto, e ao professor Nuno Ezequiel, pela elaboração do cenário.


A batalha de Natal



— Só mais seis dias — disse Neli.
Enquanto a filha tentava assobiar Noite Feliz, a mãe repetiu, pensativa, numa voz que não soava alegre:
— Ainda seis dias.
Após uma curta pausa, prosseguiu, suspirando:
— Se tudo já tivesse passado!
Com o assobio suspenso no ar, Neli olhou para a mãe com ar estupefacto:
— Não estás contente?
— Claro que sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda!
Como Neli não tinha aulas à tarde, foi patinar com uma amiga. Ao cair da noite, dirigiu-se ao supermercado onde a mãe trabalhava. Havia tanto movimento que o lugar mais parecia uma colmeia. A mãe estava sentada numa cadeira giratória, diante de uma das seis caixas registadoras. Os produtos chegavam-lhe num tapete rolante. Enquanto a mão direita marcava os números no teclado, a mão esquerda rodava as embalagens para que a máquina pudesse ler os códigos. Finda a operação, os produtos eram colocados, um a um, no carrinho de compras. Quando acabava de marcar tudo, a mão direita carregava na tecla do total e rasgava o talão, enquanto a esquerda afastava o carro cheio e puxava o próximo, vazio, para junto dela.
— Que bem fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu faria tudo devagar e, ainda por cima, metade saía mal.
— Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino. Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não encontrava a etiqueta com o preço e, muitas vezes, carregava nas teclas erradas. Como tinham de esperar, as pessoas resmungavam. Agora já quase consigo fazer isto automaticamente.
— Como um robô! — Neli riu-se.
E se tivesse um robô como mãe? Nunca teria dores de cabeça, nem à noite estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração e, por isso, Neli preferia a mãe tal como era, mesmo quando, em certas noites, quase nem conseguia falar de tão cansada!
Só mais quatro dias.
Só mais três.
As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um ruído sibilante, as portas automáticas abriam e fechavam, abriam e fechavam. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro.
Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe, tinha escrito a vermelho: PROMOÇÃO: Bombons, 250 gr, a preço especial.
Perto dele balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80€/kg.
Os altifalantes debitavam música de Natal:
Noite feliz…
Cabeça de anho
Noite feliz…
Descafeinado
Papel higiénico de três folhas
O Senhor…
Lenços com monograma
Mostarda
Nasceu em Belém…
A mãe suspirava e, com um movimento rápido, limpava o suor do lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem olhavam para a senhora da caixa, pensando apenas no regresso a casa com os sacos pesados e o eléctrico cheio.
Ufa!
Só mais três dias, e acabaria tudo.
— Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse a mãe, à noite, virando-se para Neli. — Patê em folhas de alface, porco assado, batatas fritas, feijão e, para sobremesa, creme de chocolate de lata com peras.
No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um desconto de 15%, os produtos que tinham sobrado. A mãe de Neli achava que valia a pena e, por isso, tinha guardado as compras maiores para essa altura: uma pasta escolar para Neli, uma boneca, lápis de cor, um anoraque para o pai, e a comida para a ceia de Natal.
Na sala do pessoal, houve um lanche para todos os empregados.
— A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — alegrou-se o chefe do pessoal, que proferiu mais umas palavras elogiosas.
Depois foram servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho a cada um.
Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava na paragem do autocarro. "As minhas prendas! Todas aquelas coisas boas para a ceia!", pensou assustada.
Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não voltava a abrir. Chegou a casa de mãos vazias.
Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem sobremesa. Trincaram nozes e comeram maçãs.
— Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me caem bem.
Também não havia muito que desembrulhar.
Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.
Neli foi buscar o jogo "Memory" que recebera no Natal anterior. Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que alguém tivesse tempo para jogar com ela.
Agora, os pais tinham tempo.
O pai nunca tinha jogado "Memory". Ao fim de algum tempo, Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que geralmente queria ganhar sempre, procurava constantemente no sítio errado.
Tentava alguns truques, pondo, sem ninguém dar conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou pousava as mãos na mesa, de forma a que o polegar indicasse a direcção em que estava uma determinada carta. Mas Neli descobriu-lhe a jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangou por perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto.
À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.
— A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a mãe, e Neli reparou que, afinal, a mãe estava contente por ser Natal.
Ao ir para a cama, Neli disse:
— Este foi um Natal muito bonito.
— A sério? — perguntou a mãe, admirada. — Mas não houve ceia nem prendas quase nenhumas.
— Mas houve muito tempo — respondeu Neli.

Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
(Tradução e adaptação)


O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar


Exposição "Pratos de Natal"



"O Cavalinho de Pau do Menino Jesus", de Manuel António Pina (leitura dramatizada)

Exposição "No Mundo dos Super-Heróis" (Identificação das capas de EVT)


Afinal, sempre há lugar na estalagem




E
ra uma noite fria e com muito vento em Nairobi, no Quénia. Os aguaceiros de chuva tropical não paravam de cair desde a tarde. Num enorme bairro de lata perto do nosso hospital da Missão de Santa Maria, nasceu, em segredo, uma menina não desejada, que foi atirada para uma lixeira com um cheiro nauseabundo. Durante toda a noite, esta criança esteve exposta à chuva e ao frio. Na manhã seguinte, umas pessoas do mesmo bairro descobriram-na no meio do lixo e trouxeram-na para o hospital. Vinha roxa e com a pele enrugada devido à chuva. Estava tão fria que o termómetro não conseguiu registar a sua temperatura, e a respiração era bastante fraca.
As enfermeiras do hospital conseguiram trazer esta criança de volta à vida, utilizando garrafas de água quente para a aquecerem com suavidade, oxigénio, glicose e doses ilimitadas de amor. Tiraram-lhe da boca e dos ouvidos insectos que trouxera da lixeira. No dia seguinte, a menina começou a ser alimentada a biberão. Foi-lhe dado o nome de Hazina (que significa "Tesouro" na língua suahili) e, agora, esta robusta criança reside numa enfermaria recém-inaugurada no nosso hospital.
Agradecemos a Deus pela graça que ela representa para todos nós, enquanto Centro Católico de Prestação de Cuidados de Saúde aos Pobres.
Talvez esta criança nos tenha trazido uma mensagem de Natal sobre a qual devemos reflectir. Ao longo da nossa vida, cada um de nós deve corresponder ao amor que nos é oferecido pelos outros. Devemos também experimentar o amor vivificante de Cristo na nossa vida durante esta época especial e deixarmo-nos enriquecer interiormente por ele.

William Fryda



O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O primeiro Natal em Portugal


É véspera de Natal. Mas não para Irina. Para ela só será Natal a 7 de Janeiro, quando as aulas tiverem recomeçado.
A mãe aproveita umas horas extra, na pastelaria, para preparar fornadas de bolos-reis.
O pai, antes de sair, marcou-lhe páginas e páginas de trabalhos de casa. É preciso, para poder acompanhar os colegas,
Folheando o dicionário, a pequena ucraniana procura as palavras portuguesas que há-de escrever em frente das que tão bem conhece.
ОЛiВЕДЬ — lápis
ЗОШИТ — caderno
КИГА — livro
ШКОЛА — escola
Tudo diferente! Até o abecedário... Na escola, os outros fazem pouco dela e chamam-lhe "língua de trapos". Que quererá isso dizer?
Vai à página 190, logo em seguida à 293. Era de calcular...
Tem, no entanto, orgulho em ser a melhor a matemática. Ninguém a bate em contas. Quando a professora entrega os testes e lhe dá vinte, há sempre um grupinho irritado que, no recreio seguinte, se junta, numa roda, à sua volta, cantarolando:

Irina, Irina, Irina,
Que menina tão fina!
Tem cara cor de sal,
Olhos cor de piscina.
Cabelos cor de margarina.
Ai, doem-te as saudades?
Vai tomar aspirina.

Na Ucrânia deixou tantos amigos...

Evita aqueles olhos escuros que se fixam nela, uns curiosos, outros trocistas, outros indiferentes.
Sente-se como uma extraterrestre. Porque é que os pais a mandaram vir?
Isola-se no recreio, a um canto, tentando desvendar a algaraviada das conversas. Às vezes, o Afonso murmura-lhe ao ouvido um segredo:
— Pareces uma fada!
E foge logo a correr.
Que palavrão será "fada"? Nem vale a pena procurar no dicionário. Algumas palavras que lhe dizem nem sequer lá vêm. A princípio ainda perguntou à mulher da limpeza o que significavam mas ela empurrou-a com a esfregona.
— Ordinária! Estes imigrantes mal sabem falar mas fixam logo a porcaria... Porque não voltam para o sítio de onde vieram?
Com lágrimas nos olhos, Irina vai agora à janela e vê as luzinhas acender e apagar nas árvores despidas. Por trás das paredes deslavadas das velhas casas, decerto se celebra a consoada. Como será?
Doze pratos se punham na mesa de festa no Natal da sua terra. Uma em memória de cada apóstolo.
É Natal em Portugal. Que interessa? A família está dispersa. A mãe a fazer bolos-reis que não vai provar porque para os ortodoxos é tempo de sacrifício e jejum. O pai lá anda, na construção civil. Como mais ninguém queria trabalhar na noite de 24, foi, sozinho, pintar um café que está a ser remodelado, ao fundo da rua. Os dois irmãos mais novos ficaram em Priluki, lá longe, com a avó.
Irina aquece a sopa e arranja uma sandes de queijo. Como pesa o silêncio!
De repente, sente um grito abafado no andar de cima. Algum assalto? Alguém que caiu? Não sentiu passos nem o baque de uma queda...
Com o coração a bater, põe-se a espreitar pelo óculo. Nada!
— Acudam! Acudam!
Mais ninguém se encontra no prédio. As lojas do rés-do-chão estão fechadas, os vizinhos do primeiro andar foram de férias. Por cima, na mansarda, mora uma rapariga nova, gorda, pálida.
Irina abalança-se a subir. A porta encontra-se apenas encostada e a miúda entra, a medo. Já ninguém grita. Um gemido fraco ecoa ao fundo do corredor.
Haverá feridos? Tem horror ao sangue. Por um momento, pensa em voltar para trás. Mas prossegue, pé ante pé, até ao quarto.
Deitada na cama, a moça, que ela conhece de vista, geme, agarrada à barriga enorme. Irina aproxima-se, repara que está alagada em suor.
— Ladrão atacar tu? Estar doente?
Tremendo, a outra responde:
— Chama o 112. O bebé vai nascer.
Que será o 112? Estará ela a delirar? Quase desfalece.
Então Irina precipita-se pela escada abaixo. A rua encontra-se deserta. Não conhece ninguém nas redondezas. Corre até ao café onde o pai está a pintar paredes.
— Pai, pai! — grita ela.
Anton desce do escadote, pousa o rolo, inquieto ao ver a filha naquela aflição.
— Que foi? Aconteceu alguma desgraça?
Mal sabe o que se passa, marca um número no telemóvel, dá a morada, pede urgência. Segue-a em passo apressado. Sobre eles desaba uma chuva gelada. Ficam com os cabelos a escorrer, encharcam os sapatos nas poças que, num instante, se formam.
Chegados ao prédio, o ucraniano galga os degraus dois a dois, entra sozinho no quarto da vizinha. A filha fica à espera.
— Irina, ferve uma panela de água. Traz-me um frasco de álcool, uma tesoura, toalhas.
A miúda obedece, confusa.
— Traz-me roupa lavada, para me mudar!
O pintor despe o fato-macaco, sujo de tinta e de pó, na casa de banho, enfia uma camisa branca, umas calças desbotadas. Esfrega as mãos e a tesoura com álcool.
— Irina, a água já ferve?
De novo no quarto, fala pausadamente com a rapariga, em voz alta. Ouve-se tudo cá fora.
— Força! Coragem! Está quase...
De súbito ouve-se o choro de um bebé.
— Entra, Irina — diz, pouco depois, o pai. — Vem ajudar. Já és crescida.
Entrega-lhe o recém-nascido.
A rapariga, na cama desalinhada, sorri.
— Embrulha-o num xailinho. Está na gaveta do meio.
Irina aconchega aquele corpo tão pequenino e frágil. Embala-o devagarinho, como fazia com as bonecas. Uma minúscula mãozinha aperta então o seu polegar.
O alarme de uma ambulância apita. Pára à entrada do edifício. Duas enfermeiras precipitam-se pela porta dentro.
— Então, viram-se atrapalhados? Um parto faz sempre confusão, principalmente aos homens.
— Sou médico — confessa o ucraniano. — Mas, em Portugal, ando nas obras...
As enfermeiras cruzam um olhar subitamente triste. Examinam a criança.
— O bebé nasceu no dia de Natal. É o nosso Menino Jesus.
A mãe olha para o homem e pergunta:
— Como é que o doutor se chama?
— Anton.
— António? Quer ser o padrinho? Vou pôr-lhe o seu nome.
As enfermeiras levam a rapariga e o bebé para a ambulância.
— Vão dar um passeio até à maternidade. Estão ambos óptimos.
— Manhã nós visitar! — exclama a garota.
Já passa da meia-noite. Pai e filha descem até ao patamar do primeiro andar. Na escada nunca há luz. Felizmente a gente do 112 usa lanternas... Mas, logo que o pessoal da ambulância se afasta, a escuridão instala-se. Às apalpadelas, o pai mete a chave na fechadura. Tropeça num embrulho.
— Que será? — espanta-se ele. — Esta é uma noite de surpresas.
Sobre o tapete de cairo está um embrulho enfeitado com um laçarote cor-de-rosa. Traz um bilhete preso com fita-cola.
Para uma fada loura.
com amizade
A menina abre-o. É um conjunto de canetas de ponta de feltro.
— O Pai Natal português não se esqueceu de ti — ri-se o médico.
— O Afonso é a única pessoa que me trata por fada — replica a Irina, um bocadinho corada.
Corre para o dicionário, passando as páginas até à número 159 e exclama, radiante:
OЗНАКА — fada
Depois, pega numa folha de papel e desenha, a amarelo, uma estrela a brilhar, a brilhar, a brilhar.




Luísa Ducla Soares
Há sempre uma estrela no Natal
Porto, Civilização Editora, 2006


O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

O bolo-rei


O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele era o rei dos bolos.
Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao bolo-inglês:
— Traz-me essa passa de volta.
O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:
— Sorry! I don't understand...
O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não tinha entendido.
Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a mesma ordem. Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa.
O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do excesso de natas.
— Flá, plefe, pflu, pfló...
Não se percebia nada.
O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de amêndoa, que lhe respondeu:
— Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me queixo.
O bolo-rei, cada vez mais exasperado, deu a mesma ordem a um pudim de gelatina, mas o pudim de gelatina era muito frágil, muito nervoso e só tremeu, tremeu, incapaz de dizer ou fazer o que quer que fosse.
— São uns rebeldes estes meus súbditos — concluiu, numa grande exaltação, o bolo-rei. — Condeno-os a que sejam todos cortados às fatias.
E assim aconteceu. Mas nem o bolo-rei escapou.
António torrado





O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

A fuga para o Egipto

O anjo que, invisível, acompanhava a Sagrada Família acabara por adormecer de cansaço. Mas, alta noite, uma viga do telhado rangeu com tanta força que o anjo acordou.
— Acudam! Acudam! — gritou o anjo, estremunhado.
— Que cheiro horrível é este? — E ia já pegar na trombeta de alarme para chamar as hostes dos seus irmãos anjos, mas não foi preciso. O anjo fechou a mão direita, fazendo um óculo e espreitou o horizonte. E viu que aquele mau cheiro vinha dos pensamentos repugnantes do rei Herodes. Saíam-lhe da cabeça em ondas fedorentas, como vapor de uma caldeira de água a ferver. O anjo ficou todo arrepiado e bateu as asas com força para afastar aquele cheiro horrível.
Mas era melhor avisar S. José! O anjo esfregou os olhos ensonados, sacudiu os cabelos e apareceu em sonhos a S. José. Este dormia profundamente, ressonando para as barbas brancas. Nisto, apareceu-lhe aquele Anjo de Prata, que lhe falou assim:
— Foge, José, foge! O rei Herodes quer matar o teu menino e Nosso Senhor!
S. José acordou em sobressalto. Ficou muito tempo de olhos abertos no escuro, depois levantou-se e acendeu a lanterna. A lanterna acendeu-se com a sua luz habitual. Mas quando reparou que S. José a levava para junto de Maria, aumentou um pouco a luz, cheia de respeito e curiosidade, porque até aí só conseguira ver bem Maria na noite de Natal, iluminada pelo esplendor de todos os anjos que a rodeavam.
A lanterna tentava agora dar uma luz igual a essa. Engoliu uma boa quantidade de azeite, aumentou a chama o mais que pôde, mas não conseguiu torná-la maior do que uma abelha.
«O azeite não deve ser bom — pensou a lanterna.
— Ai, eu é que não sou bom!? — respondeu o azeite.
 — A culpa é da torcida!
— Minha? — gritou a torcida.
 — A culpa é da chama!
— Estão muito enganados! — protestou a chama.
 — A culpa é toda da lanterna!»
Enquanto a lanterna discutia assim consigo própria, tentava observar  tudo o que  se passava em  volta. Maria continuava deitada sobre um monte de palha com o menino nos braços.
S. José aproximou-se dela nas pontas dos pés, tocou-lhe ao de leve no ombro e chamou suavemente:
— Maria!
— O que foi, José? — perguntou Maria abrindo os olhos, que brilharam como dois milagres. A lanterna olhou-a extasiada e quase se es­queceu de alumiar.
A senhora Noite, envolta no seu manto de veludo negro, mandou as estrelas estarem quietas, e ficou deslumbrada a ver aqueles olhos maiores do que o céu. Em geral, só costumava ver Maria de olhos fechados, enquanto ela dormia.
— Ouve lá, minha grande sovina — disse a Noite à lanterna. — Não poupes o azeite para eu poder ver melhor Nossa Senhora!
— Se a queres ver melhor, vai buscar a tua tampa de lata!
Mas a Noite só podia mostrar a Lua prateada em noites certas. E então, para ver melhor, abriu o manto e o céu apareceu cheio de estrelas, que começaram a brilhar como milhões de diamantes. O rosto de Nossa Senhora ficou todo iluminado.
— Temos que  fugir! — disse  S.  José. — O rei  Herodes quer matar o nosso menino!
Ao ouvir isto, o pobre estábulo rangeu de dor, em todas as suas vigas. Depois ficou petrificado de horror. Viu S. José ajudar Maria a levantar-se, viu-o atar a trouxa e depois sair, levando a lanterna na mão. E, assim que eles saíram, o estábulo desabou com um ruído surdo, morto de dor.
Lá fora a escuridão era completa. A lanterna ia iluminando mal o caminho, e a senhora Noite acendeu a estrela do Norte. Mesmo assim, Maria teve medo e disse:
— Quem me dera que nascesse o dia.
— É só um momento! — gritou o galo no quintal de um lavrador. E soltou o seu canto de despertar, tão alto como nunca se ouvira.
— Endoideceste? — gritou-lhe a Noite, zangada.
— Ainda não acabei o meu trabalho!
Mas o galo não fez caso e cantou segunda vez, ainda com mais força. O Oriente estoirou em faíscas e raios dourados e, ofegante, o Sol iluminou a Terra. A pobre lanterna apagou-se, envergo­nhada perante o fulgor do Sol.
O Anjo da Guarda continuava a acompanhar, invisível, a Sagrada Família, e de vez em quando espreitava pela mão fechada em óculo, a ver se havia perigo. A Noite despira o seu manto negro, tornando-se invisível.
Estou tão cansada disse Maria a certa altura. Descansemos um pouco.
E sentaram-se num tronco de árvore caído.
— Se ao menos tivéssemos um burrinho! — disse S. José.
E nisto apareceu-lhes em frente um burrinho branco. Não viera de livre vontade, não. Fora preciso o anjo invisível ir puxá-lo, dizendo-lhe palavras meigas ao ouvido, para o convencer.
S. José ajudou Maria e o Menino a subirem para o burro, e continuaram a caminhada. De repente, o anjo que os acompanhava viu ao longe os solda­dos de Herodes. Durante uns momentos voou de um lado para o outro, sem saber que fazer, e então surgiram outros anjos, como um bando de borbo­letas, cada um com o seu nome e tarefa diferente.
— Que havemos de fazer, Anjo da Inspiração? — perguntou o Anjo da Guarda.
— Penso que devemos recorrer aos fabricantes de neve, Guarda de Prata.
Então o Guarda de Prata ergueu-se no ar e soprou na sua trombeta de alarme. E logo os anjos fabricantes de neve desceram do céu, trocaram algumas palavras com o Anjo da Guarda e tornaram a subir para as nuvens. Imediatamente, apareceu no Norte uma nuvem negra e a neve começou a cair em grossos flocos sobre a terra, tapando o rasto da Sagrada Família. Ao chegar  a  uma  encruzilhada, o  comandante  dos soldados de Herodes não sabia por que caminho seguir. Mandou um grupo de soldados para cada lado, e ele seguiu com o seu batalhão pelo caminho certo.
O Anjo da Guarda começou a esvoaçar, muito aflito, perguntando a si próprio: «E agora?» Então, viu uma árvore com o tronco oco, e no alto um ninho de pega.
— Bondosa árvore, socorre-nos — pediu o Guarda de Prata.
Então, um golpe de vento fez a árvore dobrar-se até ao chão. Maria entrou no ninho da pega com o Menino, e o ninho começou a crescer, até que teve lugar para todos, e S. José entrou também.
Quando a Sagrada Família estava instalada como num enorme trono, o anjo disse ao burro:
— Podes entrar, burro. Também há lugar para ti!
Mas o burro respondeu:
— Não quero ficar empoleirado numa árvore como se fosse um pássaro.
Então a árvore voltou a endireitar-se lentamente.
Passados poucos instantes, chegaram os soldados de Herodes.
— Desmontar! — gritou o comandante.
— E inspeccionem bem esta árvore!
O cabo espreitou para o buraco no tronco da árvore, e disse: 
— Não está cá ninguém, só um burro. Mas vejo lá no alto um ninho de pega.
— Um ninho? Não vejo ninho nenhum! — disse o comandante. Depois montou a cavalo e deu ordem de marcha.
Parou de nevar, e o Sol pôs-se a Ocidente.
— Maria — disse S. José apontando um traço azul que se via no horizonte — aquilo é o mar. Amanhã lá encontraremos um barquinho.
Passaram toda a noite no ninho da pega e na madrugada seguinte a árvore inclinou-se outra vez até ao chão, e a Sagrada Família seguiu viagem. Em pouco tempo alcançaram o mar. Lá estava o barquinho a postos, com um barqueiro, que era um anjo disfarçado. Estavam salvos!
O burro, esse recusou-se a entrar no barco, e ficou, à beira da água, a dizer adeus com a cauda, enquanto o barco se afastava a caminho do Egipto.

Felix Timmermanns

Ricardo Alberty; Maria Isabel Mendonça Soares (org.)
O livro de ouro do Natal
Lisboa, Editorial Verbo, 1978





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