Se Santo António é o santo de Lisboa, São João é, sem
sombra de dúvida, o mais popular santo em Portugal. No Porto, na noite de 23
para 24 de Junho, toda a cidade perde a cabeça em homenagem a São João
Baptista, também designado por São João Degolado. Na origem do seu martírio
esteve uma mulher - Salomé.
S. João do Porto, eremita natural do Porto, (séc. IX),
viveu a sua vida eremítica na região de Tuy, em frente a Valença, tendo sido
sepultado em Tuy. No séc. XVII ainda aí se conservavam as suas relíquias, de
grande veneração entre os fiéis, que acreditavam que S. João os salvaria das
febres. Diz a tradição, que a cabeça de S. João do Porto, foi trazida pela
Rainha Mafalda no séc. XII, para a Igreja de São Salvador da Gandra e que parte
dessa relíquia teria sido levada para a capela da " Santa Cabeça ",
na Igreja de N ª Sra. Da Consolação, na Cidade do Porto. O facto da sua festa
se ter celebrado a 24 de Junho talvez explique o facto de ter o seu culto sido
absorvido pelo de S. João Baptista, cujo nascimento ocorreu no mesmo dia 24 de
Junho e a que o povo dedicou através dos tempos forte devoção e grandes festas,
mantendo-se ainda hoje muito viva a tradição das fogueiras de S. João de origem
muito antiga, ao mesmo tempo que substituíam as festas pagãs do solstício.
Festas de forte caris popular, o S. João do Porto é
uma festa que nasce espontaneamente, nada se encontra combinado, embora a festa
se vá preparando discretamente durante o dia, é normalmente depois do jantar,
constituído por sardinhas assadas, batatas cozidas e pimentos ou entrecosto e
fêveras de porco na brasa, acompanhadas de óptimas saladas, jantar obviamente
regado com vinho verde ou cerveja, mais modernamente. Findo o jantar, os grupos
de amigos começam a encontrar-se, organizando rusgas de S. João, como são
chamadas.
As pessoas muniam-se de alhos-porros e molhos de
cidreira, actualmente as armas, são outras, mudaram para martelos de plástico,
duros e ruidosos, mas que acabaram por ser bem aceites e hoje já fazem parte da
tradição, Há alguns anos atrás, o S. João limitava-se a uma área da cidade que
era constituída, pelas Fontainhas (Ponto nevrálgico), R. Alexandre Herculano,
Praça da Batalha, R. Santa Catarina, R. Formosa ou R. Fernandes Tomás, R. de Sá
da Bandeira, R. Passos Manuel, Praça da Liberdade, Av. dos Aliados, R. dos
Clérigos, Praça de Lisboa, e no retorno, subindo-se a R. de S. António, estava
praticamente concluído o percurso obrigatório.
A par deste percurso, que juntava para cima de meio
milhão de pessoas, que tornavam as ruas pejadas de gente, e onde não há
atropelos, as zaragatas são de imediato sustidas pelos populares, os
beligerantes rapidamente selam a paz com mais um copo e uma pancada de
alho-porro de amizade.
O S. João do Porto é uma festa onde ricos e pobres
convivem uma noite de inteira fraternidade e onde a festa é constante. Nos
bairros, a festa continua e as comissões organizadoras de cada uma mantém o
baile animado até altas horas da madrugada. No tempo áureo do alho-porro quem
chegasse ao Porto vindo de fora, estranharia o odor espalhado pela
cidade...efectivamente ela cheirava a alho.
Nos dias de hoje, o S. João espalhou-se pela cidade,
além do seu palco tradicional, estendeu-se até a Ribeira, às Praias da Foz, à
Boavista e por aí fora. Vai as discotecas, aos pubs e bons restaurantes.
Tornou-se mais cosmopolita e em alguns casos mais selectivo. Modernizou-se,
sofisticou-se e de certa forma, acompanhou os tempos, até penso que se tornou
mais jovem.
Mas muita da tradição ainda se mantém: Em barracas ou
espalhados pelo chão lá estão os manjericos (Planta tradicional do S. João), as
tendas das fogaças, as farturas, o algodão doce, as pipocas, as barracas da
sardinha assada e dos comes e bebes. Os matraquilhos, os carrosséis, as pistas
dos carros. As tendas de venda das louças de barro, das cutelarias, o
tiro-ao-alvo e as tômbolas.
Durante toda a noite, centenas de balões são lançados
e muito fogo-de-artifício particular é queimado, pela meia-noite o tradicional
fogo-de-artifício da Câmara Municipal, faz sempre furor pela sua beleza. No fim
e já alta madrugada é ver os foliões procurarem as padarias onde o pão acabado
de fazer e ainda quentinho vai confortar as barrigas para um merecido descanso.
A História de um Feriado
(Texto original, publicado na Revista Ponto de
Encontro de Julho de 2001)
Os festejos de S. João na cidade do Porto são já
seculares e a origem desta tradição cristã remonta mesmo a tempos milenares.
Mas foi só no século XX que o 24 de Junho passou a ser feriado municipal na
Invicta, proporcionando um merecido dia de folia a milhares de tripeiros. E tudo
graças a um decreto republicano e a um referendo aos portuenses, promovido pelo
Jornal de Notícias.
A história é curiosa e mostra o protagonismo que, já
na altura, a Comunicação Social tinha no modus vivendi urbano. Estávamos em
Janeiro de 1911 e a República Portuguesa dava os primeiros passos. A monarquia
tinha sido destronada apenas três meses antes, com a revolução de 5 de Outubro
de 1910.
O Governo Provisório da República assumia a governação
do país e, desde logo, começava a introduzir mudanças na sociedade portuguesa
que espelhavam, muito naturalmente, os ideais da nova ordem republicana. Numa
tentativa de implementar a nova ordem junto da população, o Governo Provisório
redefiniu os dias feriados em Portugal.
Por decreto, a República instituiu como feriados
nacionais o 31 de Janeiro (primeira tentativa - falhada - de revolução
republicana, em 1891, no Porto), o 5 de Outubro (instauração da República) e o
1º de Dezembro (restauração da independência em 1640), para além do Natal e do
Ano Novo. Mas o mesmo decreto impunha, a cada município do país, a escolha de
um dia feriado próprio: "As câmaras ou commissões municipaes e
entidades que exercem commissões de administração municipal, proporão um dia em
cada anno para ser considerado feriado, dentro da area dos respectivos
concelhos ou circumscripções, escolhendo-os d'entre os que representem factos
tradicionaes e característicos do município ou circumscripção".
E foi com este propósito que a Comissão Administrativa
do Município do Porto reuniu a 19 de Janeiro de 1911. Segundo o relato do
Jornal de Notícias, o "velho e conceituado republicano, sr. Henrique
Pereira d'Oliveira" logo sugeriu a data de 24 de Junho para feriado
municipal. O facto não causa espanto. Afinal de contas, o S. João era, já na altura,
uma festa com longa tradição na cidade do Porto.
A primeira alusão aos festejos populares data já do
século XIV, pela mão do famoso cronista do reino, Fernão Lopes. Em 1851, os
jornais relatavam a presença de cerca de 25 mil pessoas nos festejos sanjoaninos
entre os Clérigos e a Rua de Santo António e, em 1910, um concurso hípico
integrado nos festejos motivou a presença do infante D. Afonso, tio do rei (a
revolução republicana apenas se daria em Outubro).
Referendo popular
Contudo, a sugestão de Henrique d'Oliveira de eleger o
S. João como feriado municipal da Invicta foi contestada por outros membros da
Comissão Administrativa do Município do Porto, que mostraram opiniões diversas.
Foi então que "o sr. dr. Souza Junior lembrou, inspirado n'um alto
princípio democrático, que não devia a Commissão deliberar nada sem que o povo
do Porto, por qualquer forma, se pronunciasse em tal assumpto".
Para solucionar o imbróglio, o Jornal de Notícias
dispôs-se a organizar um surpreendente referendo popular para escolher o
feriado municipal. Logo no dia 21 de Janeiro, somente dois dias após a reunião
da Comissão Administrativa, foi colocado na primeira página do jornal o anúncio
da "Consulta ao Povo do Porto", explicando toda a situação e a forma
de participação. As pessoas teriam que enviar, até ao dia 2 de Fevereiro, "um
bilhete postal ou meia folha de papel dentro de enveloppe" para a
redacção do jornal, com a indicação do dia de sua preferência. E, para
recompensar o trabalho dos leitores, o Jornal de Notícias oferecia "dez
valiosos premios" - o mais valioso era de 10 mil réis, cerca de cem
escudos - a serem sorteados de entre todos aqueles que votassem no dia eleito.
Nos dias seguintes, o Jornal de Notícias fez o relato
diário da emocionante votação. A vitória foi quase só discutida entre o dia de
S. João, já com larga tradição na cidade, e o 1º de Maio, Dia do Trabalhador, a
que não será alheio o facto de a cidade do Porto ser considerada "a
capital do trabalho".
No dia 22 de Janeiro já se davam conta dos primeiros
resultados: "a votação de hontem, que foi grande, dá maioria ao 1 de
Maio, seguido pelo 24 de Junho (S. João) e N. S. Conceição [8 de Dezembro]
". No dia 24 - o Jornal de Notícias não foi publicado no dia 23,
segunda-feira, porque o matutino encerrava ao domingo! -, deu-se uma
reviravolta nos resultados: o 24 de Junho trocava de lugar com o 1º de Maio,
ficando na posição de mais votado. Porém, a 25, num dia em que "a votação
cresceu imenso", o 1º de Maio quase passava novamente para a liderança da
votação.
Mas foi no dia 26 de Janeiro que o resultado da
votação começou a ficar definido, ao que muito se deve a forte participação
popular do dia anterior, como relata o Jornal de Notícias desse dia: "Só
hontem vieram tantos votos como em todos os dias anteriores. O dia de S. João
tem enorme maioria. O dia 1 de Maio já está muito em baixo". E, a 27,
o próprio jornal já dava como certo o vencedor: "Positivamente o dia
mais votado é o de S. João. O dia 1 de Maio fica muito para trás. Augmenta
bastante o de N. S. Conceição". Durante os dias seguintes foram
publicados os resultados provisórios diários, sem que tivesse havido alterações
de maior no sentido de voto dos portuenses.
Até que, a 4 de Fevereiro de 1911, foram publicados os
totais finais da consulta popular: o dia 24 de Junho foi o mais votado, com
6565 votos, seguido pelo 1º de Maio, com 3075 votos, o dia de Nossa Senhora da
Conceição, com 1975 votos, e o dia 9 de Julho, com oito. "Ficou, pois,
vencedor o dia de S. João que é aquele que o povo do Porto escolhe para ser o
de feriado municipal".
Só não se sabe se o vencedor do sorteio chegou a
receber os seus 100 escudos, pois registada só ficou a promessa de que "o
sorteio dos 10 prémios a que esta consulta dá lugar far-se-á em um dos próximos
dias"...
Texto originalmente publicado na revista "Porto
de Encontro", Julho de 2001.
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