Nota da Autora
Allen Jay vivia com a família em Randolph, no Ohio, por volta de 1840. Os Jays pertenciam a um grupo religioso chamado Sociedade dos Amigos ou Quakers. Estas pessoas vestiam-se todas da mesma maneira e acreditavam que todos os homens eram iguais. Usavam roupas simples e tratavam toda a gente por "tu", fossem estranhos ou amigos.
Infelizmente, a maioria dos afro-americanos que viviam no sul dos Estados Unidos não eram tratados como iguais. Eram escravos. Os escravos trabalhavam todo o dia sem serem pagos. Os patrões tinham direito de propriedade sobre eles, como se fossem animais. Quando os escravos fugiam, eram perseguidos e castigados. Muitas vezes, eram torturados ou mortos. As pessoas que ajudavam os escravos a fugir também eram punidas.
Embora fosse perigoso, os pais de Allen, Isaac e Rhoda Jay, ajudavam os escravos a fugir. Os Jays faziam parte de um grupo secreto chamado "Caminho-de-Ferro Clandestino". As pessoas que trabalhavam para esta organização escondiam escravos fugidos nos seus celeiros, sótãos e esconderijos secretos. Levavam-nos de um lugar seguro para outro. Os fugitivos viajavam a pé, a cavalo, de carroça e por trilhos secretos até ao Canadá. Aí, todos eram tratados como iguais perante a lei.
Os Jays tinham o cuidado de não dizer a ninguém o que faziam, nem mesmo aos filhos. Allen, de onze anos de idade, sabia que os pais alimentavam e escondiam estranhos de pele escura que iam e vinham misteriosamente. Mas não percebia muito de escravatura. Até ao dia em que se encontrou face a face com um fugitivo…
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1 de Julho de 1842
Allen pendurou a última camisa na corda. A mãe estava demasiado doente para fazer esta tarefa tão pesada, por isso cabia ao filho mais velho fazê-la. Todas as segundas-feiras, Allen lavava, fervia, engomava e estendia a roupa. Depois podia brincar à vontade.
Nessa tarde, Allen dirigiu-se ao celeiro para ir buscar a sua cana de pesca. Enquanto atravessava o pátio, viu um cavalo a dirigir-se para a quinta deles. Era o médico da família, que logo se aproximou.
─ Amigo Jay! Amigo Jay! ─ gritou o médico.
O pai de Allen saiu do celeiro e caminhou rapidamente para o portão. Comentou:
─ O teu cavalo hoje tem asas. Pareces apressado.
O médico inclinou-se para Isaac e disse em voz baixa:
─ Está um escravo fugido escondido no bosque. O dono dele e os seus homens estão no seu encalço e estão armados.
Agarrou o ombro de Isaac e acrescentou:
─ Tem cuidado, Amigo.
O pai de Allen assentiu com a cabeça. O médico virou o cavalo e partiu de novo. Allen aproximou-se do pai e viu a sua cara preocupada. Perguntou-se se o dono do escravo viria matar o pai. Lembrava-se de histórias de outros Amigos que ajudavam fugitivos. Alguns tinham sido espancados. Outros tinham visto as suas casas serem incendiadas. Isaac Jay olhou para o filho.
─ Allen, pode ser que em breve vejas um homem de pele escura. Leva-o para o campo de milho, para trás da nogueira grande. O milho aí é suficientemente alto para o esconder. Mas, se o esconderes, não me digas a mim nem a ninguém que o fizeste.
Virou as costas e caminhou de volta ao celeiro. Allen nem conseguia mexer-se. O que devia fazer agora? O som de algo a estalar no bosque interrompeu-lhe o pensamento. Viu alguém mover-se por entre as árvores e o matagal. Caminhou em direcção aos ruídos, que logo cessaram. De repente, um homem com uma arma na mão saltou dos arbustos. Allen recuou rapidamente. Ficaram a olhar um para o outro em silêncio. O homem tinha as roupas rasgadas e os pés ensanguentados. A sua pele escura tinha golpes e marcas de chicote.
─ Tu filho Patrão Jay? ─ perguntou.
Os olhos moviam-se de um lado para o outro, a perscrutar a estrada e a casa.
─ Sou ─ gaguejou Allen. ─ Sou Allen, o filho dele.
O homem baixou a arma. Allen tentou ganhar coragem para falar. Sempre tinha tido dificuldade de falar claramente, mas agora precisava mais do que nunca que o compreendessem.
─ Segue-me ─ disse devagar. ─ O meu pai mandou-me levar-te para um esconderijo.
─ Percebo ─ disse o homem.
Allen conduziu-o pela borda do bosque até às traseiras da quinta. Baixaram-se, enquanto corriam pelo campo de milho. Allen levou o homem para uma clareira debaixo da nogueira.
─ Tens de ficar quieto e longe da vista das pessoas ─ sussurrou o rapaz. ─ A seu tempo, virão buscar-te.
─ Tem piedade ─ suplicou o homem. ─ Chamo-me Henry James. Fugi anteontem e ainda não comi nem bebi nada.
Os olhos pareciam tristes e cansados. Os lábios estavam gretados do calor.
─ Volto em breve com alguma comida ─ disse-lhe Allen.
Olhou em volta para se certificar de que ninguém veria Henry James. Quebrou um caule de milho e varreu a poeira atrás de si, à medida que tentava encobrir as pegadas. Certificou-se de que todos os caules de milho estavam no lugar. Depois correu até casa. Tinha esperança de que o dono do escravo estivesse a horas de distância. O pai ia precisar de tempo para planear uma fuga segura para este fugitivo. Allen abrandou o passo à medida que se aproximava do celeiro. Pensou que alguém podia estar à espreita.
Abriu a porta da cozinha. Os seus irmãos Milton, Walter, Abijah e Mary estavam à mesa a descascar ervilhas. A mãe levantou-se da cadeira de baloiço.
─ Senta-te, Allen ─ ordenou com voz tranquila. ─ Tenho uma coisa para ti.
─ Mas, mãe ─ começou Allen a protestar.
─ Fica sossegado, filho.
Allen sentou-se no banco junto de Walter. A mãe pediu:
─ Mary, por favor põe algum pão de milho e um pouco de presunto num cesto.
Allen perguntou-se como sabia a mãe que devia preparar comida a esta hora do dia e por que motivo os irmãos estavam todos dentro de casa.
─ Quem vai comer o pão? ─ perguntou o pequeno Milton.
─ Um amigo que passe à nossa porta ─ respondeu a mãe, a sorrir.
Rhoda Jay deu o cesto cheio a Allen e disse-lhe:
─ Leva este cesto a alguém que tenha fome.
Allen pegou no cesto e agarrou numa caneca de leite. Em seguida, apressou o passo em direcção ao campo de milho. Quando chegou junto da nogueira, ouviu o barulho de caules a partirem. O canhão preto de um revólver apareceu por entre as folhas de milho. Allen ficou petrificado. Percebeu pelo barulho do gatilho que a arma estava pronta a disparar.
─ Por favor, não dispares! ─ implorou o rapazinho.
Henry baixou a arma e afastou o milho.
─ Tu meter medo ─ disse, com a voz a tremer.
Allen suspirou e aproximou-se. Mostrou ao homem o que tinha trazido.
─ Serve-te à vontade.
Henry agarrou na caneca e bebeu com gosto durante muito tempo.
─ Isto ser muito bom, Patrão ─ disse, agradecido.
─ Podes ficar aqui a descansar enquanto o meu pai não vier buscar-te. Eu tenho de ir.
Allen avançou através do milho até à berma do campo. Quando estava a sair do bosque, ouviu vozes. Escondeu-se detrás de uma pilha de toros antes que alguém o visse. Espreitou através dos toros e viu o pai a falar com seis homens a cavalo. Eram forasteiros e estavam armados. Um deles interrogava Isaac Jay asperamente:
─ Tem a certeza de que não viu o meu foragido?
Isaac abanou a cabeça.
─ Já lhe disse que não. Eu nunca minto.
O dono de escravos resmungou, incrédulo.
─ Que tal darmos uma vista de olhos à sua casa?
─ São bem-vindos ─ disse Jay, calmamente. ─ Mas precisam de um mandato.
O homem gritou:
─ Pode demorar a arranjar. Voltamos amanhã de manhã.
Resmungou qualquer coisa para os homens que o acompanhavam e foram-se embora a galope. Nessa tarde, Allen não ouviu mais nada sobre o escravo em fuga ou os homens coléricos. Nem se atreveu a perguntar. O pai, quando veio jantar, falou pouco. Nessa noite, a mãe mandou os filhos cedo para a cama. O pai foi ao celeiro. Pouco depois, voltou e chamou Allen. O cavalo deles, o Velho Jack, estava atrelado a uma carroça no pátio.
─ Gostavas de ir até à casa do avô? ─ perguntou Isaac ao filho.
─ Posso ir contigo? ─ perguntou Allen, admirado.
─ Não, desta vez vais sozinho ─ respondeu o pai.
Allen nunca tinha viajado à noite sozinho pelo bosque. Havia ursos, gatos selvagens e serpentes por todo o lado. Agora, até devia haver caçadores de escravos. Mas Allen sabia o que o pai queria que ele fizesse.
A mãe saiu de casa e agarrou o braço do marido.
─ Não deves mandá-lo. É muito perigoso.
─ Mas eu tenho de ir, mãe ─ disse Allen. ─ Se o dono do escravo e os outros homens voltarem, o pai tem de estar em casa.
─ Tenho orgulho em ti, filho ─ disse o pai. ─ Se achas que deves levar alguém contigo, leva.
Rhoda Jay abraçou o filho demoradamente. Allen subiu para a carroça e tomou as rédeas.
─ Vai depressa e não te afastes da estrada principal ─ advertiu o pai. ─ Podes passar a noite na casa do teu avô.
Allen conduziu o cavalo até ao campo de milho. Parou a carroça junto da nogueira.
─ Sou eu, o Allen. Temos de nos despachar.
Henry James subiu para a carroça e encolheu-se junto dos pés de Allen. Passaram as luzes aconchegantes que irradiavam das janelas das quintas. Uma nuvem toldou a lua e a escuridão envolveu-os no meio daquela estrada acidentada. Permaneciam ambos em silêncio. Será que os caçadores de escravos iriam apanhá-los? Allen procurou não pensar no medo que sentia. E se Henry tentasse matá-lo para ficar com o cavalo? Agarrou as rédeas com força para apressar o cavalo. Tinha as mãos húmidas. Mordeu o lábio inferior.
─ Tu ter medo mim? ─ perguntou Henry.
Allen não conseguiu responder.
─ Patrão Allen, tu leva a espingarda. Se vires alguém, dá-ma depressa. Salto enquanto conduzes. Não quero que te magoes.
Henry entregou a espingarda a Allen. O rapaz abanou a cabeça. Nem conseguia tocar na arma. O escravo disse:
─ Eu não voltar àquela quinta. Podem matar-me, mas não vou mais ser chicoteado.
Em seguida contou histórias a Allen sobre a sua vida de escravo. Trabalhava o dia todo e a maior parte das noites nos campos do Kentucky. Tinha visto o irmão ser espancado até à morte. A irmã tinha sido vendida a outro dono, longe dali. Henry queria chegar ao Canadá para poder ser livre.
Allen sentiu-se mal por não ter confiado em Henry. Nesse momento, ouviu algo a agitar-se por entre as folhas. Começou a tremer. Uma sombra atravessou-se em frente da carroça. O Velho Jack empinou-se nas patas traseiras. Allen puxou as rédeas até os dedos doerem. O cavalo foi-se acalmando.
─ O que aconteceu? ─ sussurrou Henry. ─ Precisas da arma?
─ Não ─ respondeu Allen, rindo nervosamente. ─ Era apenas um coelho velho a atravessar a estrada.
Henry não se riu. Viajaram durante mais de hora e meia. Allen via um caçador de escravos em cada sombra. Estava a ficar com sono e doíam-lhe as costas. Sentia frio por causa da humidade nocturna e estava cansado de ter medo.
Finalmente, viu uma luz. Vinha de uma cabana, da cabana do avô Jay. Allen saltou da carroça e ajudou Henry a sair do esconderijo. Bateu à porta com força e o avô veio abrir a porta em pijama. Parecia surpreendido, mas sabia o que fazer.
─ Entrem depressa. Allen, vai acordar o teu tio Levi.
Allen fez o que o avô mandou. O tio vestiu-se e saiu para selar os cavalos. O avô pôs alguma comida numa trouxa e deu-a a Henry. O escravo agradeceu-lhe e seguiu-o até ao celeiro.
Antes de Henry partir com o tio Levi, Allen estendeu-lhe a mão e disse, numa voz forte e clara:
─ Desejo que faças boa viagem até ao Canadá.
Henry James pegou na mão do rapaz:
─ Não vou esquecer tu, Patrão Jay ─ disse, apertando-lhe a mão. ─ Tu ser rapaz corajoso.
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Posfácio
Trinta minutos mais tarde, Henry e Levi entraram num acampamento de afro-americanos livres no condado de Mercer, no Ohio. Tratava-se de uma paragem muito importante no Caminho-de-Ferro Clandestino. A família desse acampamento escondeu Henry até ele poder viajar para norte. Passados alguns meses, a família Jay soube que o escravo tinha chegado ao Canadá.
Allen tornou-se um conhecido professor e pastor Quaker quando cresceu. Era um orador famoso, o que surpreendia muita gente: é que Allen tinha nascido com um orifício no céu-da-boca, o que tornava as suas palavras difíceis de entender. Mas as suas poderosas palavras de paz e amor eram consideradas um tesouro por muitos Amigos. Quando envelheceu, Allen escreveu a história da sua vida e o seu encontro com o escravo fugido em A Autobiografia de Allen Jay.
Marlene Targ Brill
Allen Jay and the Underground Railroad
Minneapolis, Carolrhoda Books, 1993
(Tradução e adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
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