terça-feira, 29 de março de 2011

Não gosto de nada!

Cena 1


(Na cozinha. Bater de loiça. A Mãe, contente, canta ou assobia. Barulho de portas. Passos.)

Jacob – Mãe! Cá estou eu! E com uma destas fomes!
Mãe – Óptimo, Jacob. Estou agora mesmo a preparar um pão.
Jacob – A Catarina veio comigo. E também está com fome. Eu disse-lhe que tinhas comprado torresmos.
Mãe – Catarina, onde é que te meteste? Entra!
Catarina – Viva, D. Mariana.
Mãe – Olá, Catarina, fica à vontade. Sentem-se. Querem chá com sumo de laranja?
Catarina – Obrigada.
Jacob – Espera, Catarina, eu sirvo-te.
Catarina – Não está nada mau este pão com torresmo.
Mãe – Foi divertido no parque?
CriançasMhm-mhm.
Mãe (A rir.) – Vocês empanturram-secomo se não comessem nada há dias. Estão a abrir-me o apetite. Vou fazer um pão para mim. Pronto, já está. Vêm cheios de calor, meninos. Andaram a correr?
Jacob – Primeiro fizemos de Índios. Depois, de artistas de circo ao pé do Toni… Depois, fizemos também de extraterrestres verdes que conseguiam cheirar tudo, principalmente torresmos. O Rudi também estava. Quis trazê-lo, mas ele diz que os torresmos são muito gordurosos
Mãe – Não é nada bom para a linha… Mesmo assim, quem quer mais?
Catarina – Eu, por favor.
Jacob – Eu também.
Mãe – E eu também… O Carlitos esteve lá?
Catarina – Não. Ele é muito aborrecido.
Jacob – Com ele não se pode fazer nada.
Mãe – Por ser aborrecido?
Jacob – Nem imaginas como ele é! Não gosta de nada.
Mãe – Não gosta de nada? Foi ele que disse isso?
Jacob – "Não gosto disto, não gosto daquilo…".
Catarina – O Carlitos é tão… diferente, sabe, D. Mariana. Ou se gaba tanto, que só de o ouvirmos até nos massacra os ouvidos, ou então está aborrecido e não quer participar em nada. Fica sentado a dizer: "Não gosto de nada disso".
Mãe – E quando ele conversa, o que é que diz?
Jacob – Oh, tudo e mais alguma coisa. Quanto é que o pai ganha, para onde é que vão nas férias, que já foi aos esquimós ou lá onde foi, quantos CDs é que já tem…
Catarina – 38…
Jacob – E que pode ver na televisão todos os filmes policiais que quer…
Mãe – Hum…
Catarina – E que nós somos uns coitados porque não podemos. Na turma, já ninguém lhe liga. Por ele ser tão parvo, a Susi até já disse que nunca mais o deixa copiar por ela. E que também nunca mais lhe vai dizer as respostas.
Jacob – Na escola, anda sempre a fazer asneiras e depois a Professora chama a mãe. Mas ela zanga-se de cada vez que tem de lá ir, porque perde um dia no escritório…
Catarina – Ele está a ficar cada vez pior. A única coisa que consegue fazer é o pino! É o único de nós todos. É capaz de fazer o pino e ficar a andar às voltas. Claro que faz isso quando e onde lhe apetece. A Susi sugeriu que, quando ele voltasse a fazer o pino, nós devíamos combinar e olhar todos para o outro lado.
Mãe – Então não me admira nada, coitado do rapaz. Se ninguém gosta dele, como é que ele há-de andar contente?
Jacob – Vamos passar a andar atrás dele? Mãe, eu já não o aguento! Prefiro outra pessoa qualquer. Até prefiro o Toni, embora ele só consiga dizer ããããã… (Catarina ri baixinho.)
Mãe – Jacob!
Jacob – Não digo isto por mal. Eu gosto do Toni. Mas, pronto, ele só faz ããããã
Mãe – O Toni é uma criança deficiente, e não consegue falar como uma criança normal.
Catarina – Mas nós agora já sabemos o que ele quer dizer com ããã. Ele di-lo de diferentes formas. Hoje, quando representávamos o circo, ele acenou com a cabeça e gritou ããã e descobrimos que ele queria dizer "Outra vez!".
Jacob – Isso foi quando o Rudi fez de leão e tu de domadora.
Catarina – É! Esse foi o número que mais divertiu hoje o Toni.
Mãe – Então vocês… Vocês brincam ao circo para o Toni?
Jacob – Achas esquisito?
Mãe (Apressadamente.) – Não, não. É que eu pensava que vocês o visitavam apenas de vez em quando e que só brincassem e falassem com ele. Mas fazerem circo…
Jacob – É difícil brincar com ele, porque ele tem de estar sempre no carrinho e não pode fazer nada. No fim de cada número, bate palmas. Foi a Susi que lhe ensinou. E às vezes agarra uma bola, quer dizer, atira-se a bola mesmo para o colo dele e depois ele agarra-a. Atirar a bola é que já não é capaz de fazer.
Mãe – Sabes porque é que eu primeiro me admirei que vocês fizessem coisas engraçadas em frente de uma criança deficiente, incapaz de andar e de correr? É que o Toni nunca há-de conseguir fazer isso.
Jacob – Mas ele gosta de ver. Se não, não se ria. Quando vê, diverte-se. Rir ele sabe.
Catarina – A princípio, a porteira do prédio ralhou connosco. Viu-nos através da janela do pátio e indignou-se por sermos insensíveis e fazermos coisas diante do Toni que ele, coitado, não consegue fazer. Nós ficámos muito assustados e queríamos ir embora, mas o Toni começou a choramingar e a mãe do Toni veio logo a correr cá abaixo e ouviu tudo. Fez festas ao Toni e disse: " – Oh, eu, por exemplo, não sei tocar trompete, mas fico contente quando alguém toca para mim. Continuem com o vosso circo. Eu fico contente quando o Toni se diverte."
Jacob – Ele fica mesmo contente, por isso é que gostamos tanto de ir lá. Porque ele gosta. O Rudi anda agora a treinar um número de cambalhotas.
Catarina – E a Susi, outro com bolas.
Mãe – O Carlitos não ficaria bem no vosso programa, já que sabe fazer o pino? … (Pequena pausa.) Ah?
Catarina – Bem…
Jacob – Primeiro, teríamos de lhe perguntar se ele queria mesmo vir…
Catarina – Seria uma boa oportunidade para ele se exibir…
Mãe – Teria principalmente uma oportunidade de dar uma grande alegria ao Toni! Gostava depois de ver se ele ainda diria: "Não gosto de nada!" Aquele que se sente útil e que dá uma alegria a outro decerto já não pode dizer: "Não gosto de nada!"
Catarina – Bem, não sei se o Carlitos vai deixar que o levemos até lá…
Mãe – Então, e se vocês precisassem mesmo dele?
Jacob – Será que ele vai acreditar que precisamos mesmo dele? Da maneira como nos temos portado com ele até agora…
Mãe – Jacob, vou dizer-te uma coisa, uma coisa difícil de compreender. E a ti também o digo, Cati. Quando alguém não gosta de nada – não interessa se é uma criança ou um adulto – quando alguém diz que não gosta de nada, isso é um grito de socorro. É alguém que pede socorro dessa maneira por se sentir mal. É ainda muito pior do que o Toni no seu carrinho, já que o Toni consegue alegrar-se com alguma coisa e é capaz de o demonstrar. Dessa forma, ele também vos dá alegria. Não é verdade que, quando o Toni fica contente, isso também vos faz felizes?
Crianças – Pois faz!!
Mãe – Quando o Carlitos diz: "Não gosto de nada!" está a querer dizer-vos: "Ajudai-me, por favor. Estou triste porque ninguém precisa de mim. Ninguém olha para mim." Se vocês precisarem do Carlitos, se ele tiver a oportunidade de proporcionar alegria a outra pessoa, ele vai mudar. Não imediatamente, mas com o tempo. Não há-de precisar mais de se exibir nem de aborrecer os outros. Vai tornar-se diferente. Mas têm de ter paciência com ele. Eu, no vosso lugar, tentava.
Jacob – Mesmo que ele no início seja arrogante?
Mãe – Mesmo assim! Têm de arriscar. E não dar muita importância a isso.
Catarina – Eu faço-te sinal, Jacob, quando o Carlitos estiver a ser arrogante. Assim, não precisas de te zangar.
Mãe – Tens uma boa amiga, Jacob! (Catarina ri baixinho.)
Jacob – Bem, podemos tentar…

Cena 2


 (Recreio da escola. Barulho do intervalo. Campainha.)

Jacob – Bem, Carlitos, fica combinado. Hoje vens connosco ao Toni.
Carlitos – Não! Acho que não vou gostar.
Catarina – Se vais gostar ou não, isso não interessa agora. Tens de vir, porque nós precisamos de ti.
Jacob – És o único que sabe fazer o pino e dar voltas.
Catarina – Podes indicar-nos outra pessoa que saiba andar de pernas para o ar?
Carlitos – Não!
Jacob – Então, estás a ver?
Catarina – Tu não tens de gostar, Carlitos, mas o Toni vai adorar. Ele nunca na vida viu ninguém que saiba andar e fazer o pino.
Jacob – Temos de explicar primeiro ao Carlitos como é que ele sabe que o Toni está a gostar, Cati.
Carlitos – Eu não sou parvo!
Catarina – Mas o Toni… bem, o Toni só sabe dizer ããã. Por isso, quando ele se rir e abanar a cabeça e disser ããã, quer dizer: "Outra vez!" E tu tens de repetir o número!
Carlitos – E quando ele não gosta?
Jacob – Então torce a boca e diz ããã.
Catarina – Mas ele vai gostar, vais ver. Nunca viu um número com esta categoria… (Música no fim desta cena.)

Cena 3


(Pátio. Crianças a rir.)

Carlitos (Em voz baixa.) – Este é que é o vosso Toni? Ora bolas! Tem cá um aspecto…
Catarina (Em voz baixa.) – Uma pessoa habitua-se. Espera quando ele se rir. De um momento para o outro, fica com outro aspecto. Fica mesmo querido!
Jacob – Minhas senhoras e meus senhores, caríssimo público! Segue-se agora o ponto alto do nosso programa de gala de hoje. Susi, tambor, por favor! (O tambor rufa.) Uma salva de palmas para Mister Carlitos Carlitovitch! (Aplausos.)
Carlitos – Bom, está bem. Já que aqui estou… Upa!
Crianças – Oooh… (Primeiro silêncio, depois aplausos.)
Toni Ããã.
Carlitos – O que queres dizer, Toni? É comigo?
ToniÃãã.
Catarina – Ele quer dizer: "Outra vez!".
Carlitos – Mas com certeza! (Silêncio. Palmas.)
Catarina – Olha, Carlitos, o Toni está a aplaudir-te. Tens de fazer uma vénia! Nós fazemos sempre uma vénia como artistas de circo a sério!
Toni Ããã.
Jacob – Logo vi que ia gostar.
Carlitos – Outra vez, Toni? Sim? Está bem, olha para aqui…
Porteira – Agora é que eu estou pasmada! Ele faz o pino e anda!
Catarina – Esta é a porteira, Carlitos. Traz-nos sempre sumo.
Porteira – Ele até abana os pés. Assim bem não me admira que o Toni se divirta. (Aplausos.) Anda cá, deixa-me olhar para ti. Tu és novo. Como te chamas?
Carlitos – Carlitos.
Porteira – Então és o Carlitos. Tens mesmo jeito para palhaço. E é bonito que te tenhas esforçado por causa do Toni…
Carlitos – Eu não me esforcei.
Porteira – Está aqui o vosso sumo, meninos. Peguem no tabuleiro. Têm de o segurar para o Toni poder beber também.
Catarina – Eu faço isso.
Carlitos – Dá cá, Cati. Eu faço isso. Aqui tens, Toni, bebe. Anda, põe as mãos em volta do copo. Segura tu sozinho. Anda, tenta… Cati, olha! Ele está a tentar!
Catarina – A mãe treina com ele todos os dias, mas é preciso ter paciência.
Carlitos – Muito bem, Toni. Outro gole… Sim, nós seguramos os dois no copo. Pronto. Cati, ele agora não parece tão… tão… quero dizer, parece muito querido!
Catarina – Porque está contente, Carlitos.
Carlitos – Achas que ele ia gostar de um número de palhaços com um acordeão pequenino a chiar horrivelmente? Ou um número de arcos? Mas eu iria precisar de uma outra pessoa.
Catarina – E essa pessoa precisa de saber fazer muita coisa?
Carlitos – Claro que não! Só tem de segurar no arco e gritar "Upa!"
Catarina – Eu podia fazer isso lindamente… se tu quisesses fazer comigo…
Carlitos – Claro que… que eu ia gostar muito...
(Alguns compassos de música, no final.)

Lene Mayer-Skumanz (org.)
Jakob und Katharina
Wien, Herder Verlag, 1986
(Tradução e adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

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