…continuação
Finalmente, sentiam-se preparados para dar o seu sábio parecer, muito pausadamente, ao Grande Chefe Pé-de-galo, que aguardava sentado junto deles.
Foi Pé-Sentado quem falou:
— Após cuidadoso exame às penas trazidas pelo pequeno Pé-de-atleta, concluímos que não são penas de ave.
O Grande Chefe mostrou-se surpreendido e perguntou, atrás de uma densa nuvem de fumo:
— Não são penas de ave?!
E o que são, então?
Desta feita, foi a voz do velho índio Pé-de-guerra que soou, muito misteriosa:
— São penas... de gente.
Quando a notícia foi dada ao pequeno índio Pé-de-atleta, duas luas e meia mais tarde, ele pôs-se a pensar e concluiu que a pessoa da tribo que parecia ter mais penas era eu mesma, índia Pé-Chato, que estou a contar-te como tudo se passou.
Na verdade, não pude estar presente na reunião em volta da fogueira onde as penas foram mostradas a toda a tribo. Fiquei de cama com febre e com uma pena terrível de não ir.
O pequeno índio veio, então, ter comigo ao pé do riacho e foi directo ao assunto, mostrando-me as penas:
— São tuas?
Eu não podia negar, eram mesmo minhas, embora me custasse acreditar que estavam ali, à frente do meu nariz. Então, abanando a cabeça em sinal afirmativo, respondi-lhe «lá» com o polegar esticado, como vi uma vez num filme de outra civilização.
Entendi que devia explicar ao pequeno índio o que tinha acontecido.
Peguei nas penas e comecei a contar-lhe:
— Trata-se de penas da alma. Sabes como é, quando se fica muito triste ou com muitas saudades, nascem-nos penas como estas, no fundo da alma.
— Estás a dizer que estas penas saíram mesmo da tua alma?! — admirou-se Pé-de-atleta.
—É como dizes — confirmei.
— Conta mais!— pediu ele.
— Bem, normalmente, as penas ficam cá dentro de nós. Só saem se alguém nos ajudar a deitá-las para fora, o que nem sempre é fácil — disse eu.
— E o que foi que tu fizeste? — tornou o pequeno índio.
— Falei com um dos mais velhos da nossa tribo que me disse assim: «As penas só te deixarão quando não tiveres pena de as deixar ir embora.» Na altura, não percebi bem o que ele me disse, mas resolvi afastar-me e ir até à montanha onde os veados costumam passear. Lá, pus-me a pensar, a pensar... Subi à rocha que está mesmo no cimo e dei um suspiro muito muito fundo até o pensamento ficar quase vazio.
Depois, deixei o ar ainda fresco da manhã entrar nos meus pulmões e, logo em seguida, as minhas penas começaram a sair e a subir pelo ar, muito devagarinho.
— Fala-me agora destas penas — pediu Pé-de-atleta.
Respirei fundo e fiquei a pensar se deveria ou não contar-lhe.
Depois, achei que sim, porque tinha sido ele a encontrar as minhas penas, que, afinal, tinham acabado por cair mesmo à frente do seu nariz arrebitado.
— Estas são todas penas de saudades, por isso são bonitas — disse-lhe. Mas achei melhor explicar: — Saudades das pessoas que já não vivem comigo porque partiram para o céu, e saudades também da minha irmã Pé-de-vento, que não vejo há mais de cem luas.
— Estás a falar daquela que está na grande cidade, a estudar para ficar a saber curar dores de barriga, constipações e comichões?
— Essa mesma, meu amigo. Ela está onde tem de estar. E eu fiquei com saudades, mas estou feliz porque sei que voltarei a vê-la! Somos amigas e, em muitas coisas, semelhantes. Havemos de reencontrar-nos. Agora, tenho essa certeza. Só ainda não sei o que vou fazer com estas penas... Não me passou pela cabeça voltar a vê-las.
Pensei que me tinha mesmo visto livre delas...
— Isso é fácil! Faz alguma coisa útil — sugeriu Pé-de-atleta, muito despachado.
— O quê, por exemplo?
Então, Pé-de-atleta deu-me uma resposta que, na altura, me pareceu meio disparatada:
— Olha, faz uns brincos!
— Essa ideia não tem pés nem cabeça! — refilei.
— As ideias não precisam de ter pés nem cabeça. Basta que sejam boas!
Franzi o sobrolho e murmurei longamente: «Huuuummm...» como ouço fazer aos anciãos da tribo quando ficam a pensar numa coisa importante.
Na verdade, a ideia de Pé-de-atleta, o pequeno índio, era boa. Só precisava de pô-la em prática, mas como?! Eu não sabia fazer brincos, nem pulseiras, nem sequer um anel de latão para o dedo mindinho!
Lembrei-me, então, de levar as minhas penas ao artesão da nossa tribo, o famoso índio Pé-Dali. Ele era o fabricante de tapetes de sela e o único artista que eu julgava capaz de transformar penas em qualquer coisa bonita para se usar.
Sem demora, fui ter com o artista.
Ele estava no seu tipi a fazer o desenho de um cavalo e quase nem deu pela minha presença. Entreguei-lhe as penas e pedi-lhe que fizesse com elas um par de brincos — os mais bonitos que ele conseguisse
fazer. Pedi-lhe também que não se demorasse, de modo a estarem prontos para o aniversário de Pé-de-vento, no segundo dia do sexto mês.
Porém, Pé-Dali não se despachou... Os artistas são imprevisíveis, sabes como é. Só agora tenho os brincos prontos. À espera de que Pé-de-vento regresse para lhos dar. Ela vai gostar. Ficaram lindos!
E pronto. A história dos brincos de penas está a acabar...
Todas as histórias têm um fim, menos a história da nossa vida — essa está escrita num livro muito grande (o maior do Universo), que só existe na biblioteca que há no Céu. Cá na Terra, ninguém teria tempo de o ler. Tu e eu também aparecemos lá, no grande livro. E, claro, aparecem também todas as outras pessoas do mundo — índias ou não. Porém, só Deus conhece esse livro de cor e sem precisar de o ler, porque sabe tudo.
Mas, antes de terminar, ainda queria dar-te a conhecer a conclusão a que cheguei: é que, afinal, sempre se pode fazer alguma coisa útil com as nossas penas quando elas não querem ir-se embora (porque há penas assim, um bocado teimosas, que querem ficar cá dentro a causar-nos tristeza). O meu tetravô Pé-de-nabo, que era um grande filósofo (que é como quem diz, gostava de pensar nas horas livres), dizia assim: «Se a vida te dá um limão azedo, junta-lhe água e açúcar e tens uma limonada!»
Boa ideia, não é?
FINAL
Maria Teresa Maia Gonzalez
A História dos brincos de penas
Lisboa, Editorial Presença, 2006
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
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