segunda-feira, 22 de março de 2010

A mesa dos ricos



Se nos vissem sentados na nossa mesa de cozinha, feita à mão e toda arranhada, saberiam logo que não somos ricos.
Mas o meu pai está a tentar fazer-nos ver que somos.
Será que não vê os meus sapatos gastos? Ou que o meu irmãozinho tem remendos nas calças que leva para a escola?
E como explicará ele aquela carrinha a desfazer-se, estacionada à nossa porta?
─ Não consegues enganar-me ─ digo-lhe. ─ Somos pobres. Será que os ricos se sentariam a uma mesa como esta?
A minha mãe, como que acariciando a mesa, diz:
─ Bem, nós somos ricos e sentamo-nos aqui todos os dias.
Às vezes, penso que sou a única pessoa sensata na família. Diga-se de passagem que os meus pais fizeram esta mesa com madeira que outras pessoas deitaram fora. Até festejaram quando a terminaram.
Não me interpretem mal: eu gosto desta mesa. Só digo que se vê logo que não veio de uma loja de mobílias. Não tem ar de ser uma mesa à qual os ricos se sentariam.
Mas a minha mãe pensa que, se todos os governantes do mundo se sentassem em redor de uma amigável mesa de madeira na cozinha de alguém, resolveriam os seus diferendos em metade do tempo.
E o meu pai diz que não fazia mal se houvesse um lindo prato azul com muitos bolinhos empilhados, que todos pudessem tirar, mesmo sem ter de pedir.
Hoje, porém, trata-se da nossa cozinha, da nossa discussão, da nossa reunião familiar, dos nossos bolinhos de gengibre com especiarias, empilhados no melhor prato de flores azuis da minha mãe, colocado exactamente no centro da mesa.
Fui eu que convoquei a reunião, cujo tema é dinheiro; o meu ponto de vista é que não temos dinheiro que chegue.
Digo aos meus pais que devem ambos arranjar empregos melhores, para podermos comprar muitas coisas novas e boas. Digo-lhes que faço má figura na escola diante dos outros.
─ Não gosto de ter de falar disto, mas era bom que fossem ambos mais ambiciosos.
Ficam surpreendidos. Vê-se bem que nunca pensam nas coisas de que necessitamos.
Devo dizer desde já que os meus pais têm umas ideias estranhas acerca do trabalho.
Pensam que os únicos empregos que interessam são empregos ao ar livre. Querem ter rochedos, desfiladeiros, desertos ou montanhas em redor deles, onde quer que estejam a trabalhar. Até querem ver bem o céu.
Trabalham sempre juntos e a sua ocupação favorita é procurar ouro. Enfiam-nos naquela carripana e lá vamos nós em direcção às montanhas rochosas e desertas ou em direcção a alguma ravina estreita, onde todas as estradas se assemelham a trilhos de coiotes.
Adoram caminhar pelas amplas margens de rios agora secos, onde se podem encontrar pequenos salpicos de ouro. Costumavam dizer-nos que a carrinha sabia exactamente que tipos de estrada bater, e que os coiotes lhes indicavam onde procurar ouro, mas eu nunca acreditei neles.
Depois de passarem lá um mês ou dois, traziam sempre um pouco de minério para vender, mas vê-se bem que nunca enriqueceram. Pelo que me é dado ver, tratava-se apenas de um pretexto para acampar de novo num lugar selvagem e belo.
Não se importam de plantar campos de milho doce ou de alfalfa. Gostam de apanhar pimentão-de-cheiro, abóbora e tomate. Conseguem construir vedações fortes ou domar potros selvagens.
Mas dizem que não aguentam ficar engaiolados em casa.
Por isso, o meu pai pergunta:
─ Quantas pessoas há que sejam tão afortunadas como nós?
Mas como fui eu quem convocou esta reunião, respondo:
─ Aposto que fariam mais dinheiro se trabalhassem num escritório na cidade.
─ Lembra-te da nossa regra número um ─ insiste o meu pai.
─ Temos de poder ver o céu.
─ Podiam vê-lo através de uma janela ─ sugiro.
Mas eles nem querem ouvir falar disso.
Já percebem porque digo que sou o único membro sensato da família?
Finalmente, a minha mãe diz:
─ Está bem, Filha da Montanha. Vamos explicar-te como fazemos contas. Hoje, vais ser a nossa contabilista.
Distribui um lápis e uma folha de papel amarelo por cada um de nós, o meu irmão incluído, embora ele só finja que escreve enquanto nós escrevemos, ou desenhe pessoas a dançar no céu.
Já agora, o meu nome não é Filha da Montanha. Chamam-me assim porque nasci numa cabana na encosta de uma montanha, no Arizona, num Verão em que os meus pais tinham ido em busca de ouro.
Dizem que era um lugar mágico, a mais bela montanha que alguma vez escalaram. Talvez fosse, mas sabemos bem o quanto eles gostam de exagerar.
Como queriam que a primeira coisa que eu visse fosse aquela encosta, quando tinha apenas oito minutos de vida levaram-me a ver o nascer-do-sol.
A verdade é que ainda gosto muito do nascer-do-sol.
Quanto ao meu irmão, chamam-lhe Filho do Oceano. Como eu tinha tido a melhor montanha como primeira paisagem da minha vida, acharam que deviam encontrar o oceano mais belo para quando ele nascesse. Penso que percorreram o México todo para encontrar um lugar onde o oceano e a selva se encontrassem. Queriam que o céu estrelado fosse azul-púrpura e que as ondas do mar fossem da cor verde que eles preferem.
Ergueram-no bem alto, para que aquelas ondas fossem a primeira paisagem da sua vida.
Havemos de voltar um dia àquele oceano verde e à minha montanha alta. Por ora (embora os meus pais digam que são ricos), não há dinheiro para irmos a lado algum.
Por isso, não admira que eu tenha tido de convocar esta reunião.
Acreditam que o meu pai me olha bem nos olhos e me diz:
─ Mas, Filha da Montanha, eu estava persuadido de que sabias o quanto somos ricos.
Respondo-lhe:
─ Esta conversa só vai resultar se admitirmos que somos pobres.
O meu pai continua:
─ Vou provar-te agora mesmo o que disse. Façamos uma lista do dinheiro que ganhamos por ano.
─ Quanto é? ─ pergunto. ─ Preciso de anotar.
─ Calma aí ─ adverte o meu pai. ─ Temos de pensar em montes de coisas antes de somarmos tudo.
─ Que coisas?
A minha mãe contribui:
─ Sabes que não recebemos o nosso salário apenas em papel-moeda. Temos um plano especial que nos permite ser pagos em pôres-do-sol, em tempo para escalar desfiladeiros e procurar ninhos de águia.
Não desarmo:
─ Não podem dar-me uma quantia só para que eu possa anotar?
Começamos com vinte mil dólares.
É quanto o meu pai diz que vale poder trabalhar ao ar livre, ver o sol durante todo o dia, sentir o vento e cheirar a chuva, uma hora antes de ela cair realmente.
Diz que é quanto vale estar num sítio onde pode cantar alto quando lhe apetece, sem incomodar ninguém.
Mal escrevo vinte mil,a minha mãe acrescenta:
─ É melhor escreveres trinta mil, porque poder ouvir coiotes a uivar nas colinas vale, pelo menos, mais dez mil dólares.
Escrevo trinta mil.
A mãe lembra-se de que também gostam de viagens longas e de montanhas distantes que mudam de cor dez vezes ao dia.
─ Para mim, isso vale mais cinco mil dólares.
O que não me surpreende, já que a minha mãe afirma ser uma especialista em sombras de montanha no deserto. Diz que consegue saber as horas pela forma como as cores das sombras variam do nascer ao pôr-do-sol.
Apago o que escrevi antes e escrevo trinta e cinco mil dólares.
O meu pai lembra-se, então, de outra coisa.
─ Quando um cacto floresce, temos de lá estar porque podemos não voltar a ver aquela cor em mais dia algum da nossa vida. Quanto pensas que vale essa cor?
─ Cinquenta cêntimos? ─ pergunta o meu irmão.
Decidem-se por acrescentar cinco mil à lista.
Já vamos em quarenta mil dólares.
Mas eu tinha-me esquecido do quanto o meu pai gosta de imitar os sons dos pássaros. Consegue imitar qualquer um, mas a sua melhor imitação são as pombas de asas brancas, os corvos, os falcões de cauda ruiva e as codornizes. Também é bom a imitar águias e corujas de grandes bicos. Por isso, lá temos nós de acrescentar mais dez mil por termos a sorte de conviver com aves diurnas e nocturnas.
Risco a soma que tinha escrito e assento cinquenta mil dólares.
─ Agora vejamos quanto vale a nossa Filha da Montanha.
Decido entrar no jogo e sugiro que valho dez mil dólares, embora o meu irmão tenha começado a rir-se.
─ Não te subestimes ─ diz o meu pai. ─ Lembra-te daquelas listas fabulosas que nos fazes.
Tem razão. Faço listas dos melhores livros que cada um de nós leu, e dos que cada um de nós quer ler de novo. Também fiz uma lista de todos os animais que cada um de nós viu e daqueles que mais queremos ver ─ ao ar livre, não num jardim zoológico.
O animal que eu mais gostava de ver é o leão da montanha. Já sonhei com ele quatro vezes e também já lhe vi o rasto. O meu pai escolheu o urso-pardo da América. A minha mãe quer ver um lobo e ouvi-lo uivar. O meu irmão hesita entre um golfinho e uma baleia. Lembro-me de todos porque sou eu que faço as listas.
Acabam por achar que valho um milhão de dólares.
Protesto, mas anoto a soma.
Acabamos por decidir que cada um de nós vale um milhão de dólares.
A soma de toda a nossa riqueza totaliza agora quatro milhões e quinhentos mil dólares.
Dou-me conta de que quero adicionar cinco mil dólares pelo prazer que me causa vaguear pelo campo, sozinha, livre com um lagarto, sem ter de seguir trilhos, sem ter um plano, apenas pelo prazer de andar ao sabor do vento.
A minha família acha que isso vale cinco mil.
O que totaliza quatro milhões e cinquenta e cinco mil dólares.
Por fim, o meu irmão quer ainda juntar sete dólares por todas as noites em que adormecemos ao ar livre, sob as estrelas.
Pensamos que sete dólares são insuficientes e convencemo-lo a arredondar para cinco mil.
A minha folha regista agora quatro milhões e sessenta mil dólares ─ e ainda nem sequer começámos a contar o nosso dinheiro em papel-moeda.
Para ser franca, esse tipo de riqueza já não conta muito neste momento.
Sugiro que nem faça parte da nossa lista de riquezas.
E, assim, a reunião chega ao fim.
A família foi até lá fora ver o novo quarto de lua. Mas eu fiquei sentada à nossa querida mesa feita à mão, sobre a qual o prato de flores azuis da minha mãe conserva ainda um bolinho, e escrevo este livro sobre nós. Acaricio a mesa e fico contente por a termos.
Acho que o título deste livro vai ser A Mesa dos Ricos.

Byrd Baylor
The Table Where Rich People Sit
New York, Aladdin Paperbacks, 1998
       

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