quarta-feira, 22 de julho de 2009

A lenda da rosa-de-cristo - 3ª parte

continuação…
Os anjos interromperam imediatamente os seus cânticos e fugiram espavoridos. A luz intensíssima desapareceu de repente, a pesada atmosfera de ouro diluiu-se e a escuridão voltou a descer sobre a floresta. Sentiu-se um frio glacial, as flores começaram a murchar e os animais correram a refugiar-se nas suas tocas. O murmúrio das cascatas suspendeu-se e as folhas tombaram das árvores como uma chuva de cobre.
O coração do abade apertou-se de dor ao pensar: «Os anjos do céu visitaram-me cantando, e um terrível brado afugentou-os». E nesse momento lembrou-se da flor que prometera ao arcebispo. Meteu a mão por entre os musgos para apanhar ainda a última, mas sentiu os dedos gelados, porque a neve voltara a cobrir tudo. Tentou erguer-se, mas não conseguiu, e ficou estendido no chão, hirto. Sobre ele caía a neve, soterrando-o.
O irmão leigo chorou, acusando-se por ter sido o causador da morte do abade, quando ele ia entrar na bem-aventurança. E depois de transportarem o abade para o convento de Ovede, os frades repararam que ele segurava qualquer coisa na mão fechada. E, quando conseguiram abrir-lha, viram que ele apertava com força os bolbos que arrancara dos musgos antes de morrer.
O irmão leigo foi enterrar os bolbos num canteiro do jardim, cuidou muito bem deles e esperou durante o ano inteiro que dessem flor. Passou a Primavera, o Verão e o Outono, e no Inverno, quando todas as outras flores estavam mortas, já tinha perdido a esperança de os ver florir. Mas, quando chegou o Natal, o irmão leigo viu com espanto que os bolbos vindos da floresta estavam cheios de flores brancas e delicadas. E verificou que aquelas flores eram iguais às que o abade João trouxera da floresta de Goinger.
Reunidos os frades em capítulo, todos concordaram que aquelas flores deviam ser mandadas ao arcebispo Absalão para comemorar o milagre.
E quando o irmão leigo foi à presença do arcebispo, estendeu-lhe as flores e disse:
— Estas são as flores que te envia o nosso abade João. São as que ele prometeu colher na noite de Natal, na floresta de Goinger.
E o arcebispo, ao contemplar as flores que em pleno Inverno tinham conseguido brotar da terra gelada e ao ouvir o que o leigo lhe contou, ficou uns segundos em silêncio e depois disse pausadamente:
— O abade João cumpriu a palavra dada, e eu vou cumprir a minha.
E mandou redigir a carta de alforria que libertava o salteador.
O irmão leigo partiu para a floresta e procurou a gruta dos salteadores. Ao encontrá-la, era outra vez noite de Natal e o ladrão veio ao seu encontro e gritou:
— Malditos sejam todos os frades! Por vossa culpa, a floresta este ano não se tornou num Paraíso como era costume em noite de Natal!
— Trago uma mensagem do abade João! — E tirando do bolso a carta de alforria disse-lhe que ele podia ir viver em sociedade com a outra gente. E mostrou-lhe o selo lacrado do arcebispo Absalão.
— De hoje em diante podes passar o Natal com os teus filhos e festejar com eles o nascimento do Menino Jesus, na companhia dos homens de bem, como era desejo do nosso abade João.
E a mulher do salteador disse:
— O abade João cumpriu a promessa. O salteador da floresta cumprirá a sua.
E quando o salteador, a mulher e os filhos abandonaram para sempre a gruta, o irmão leigo ficou a viver nela para o resto da vida, entregue às suas orações, pedindo a Deus que lhe perdoasse a sua pouca fé e dureza de coração.
O irmão leigo arrependera-se de ter pronunciado aquelas palavras malditas na noite dos prodígios a que assistira, mas o certo é que desde essa noite a floresta de Goinger nunca mais festejou o nascimento do Salvador, e de todas as maravilhas que ali se operavam só restou a flor que o abade colhera no último segundo de vida.
Puseram-lhe o nome de rosa-de-cristo, e todos os anos essa planta brota da terra gelada e cobre-se de flores brancas, como se quisesse lembrar o tempo em que floria na floresta de Goinger, em noite de Natal.
FIM
Selma Lagerlöf
Ricardo Alberty;
Maria Isabel Mendonça Soares (org.)
O livro de ouro do Natal
Lisboa, Editorial Verbo, 1978
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

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