quarta-feira, 13 de maio de 2009

De que estiveram a falar?

O João espera pela mãe à porta de casa sentado no banco azul. Uma hora e dez. Quando ainda há meia hora olhara para o relógio, eram uma hora e cinco. A mãe nunca chega a casa antes das duas e cinco, isso quando vem cedo. Esquecera-se das chaves.
Passa a D. Joana:
— Então, João, ficaste fechado cá fora?
João faz um aceno de cabeça, delicadamente.
Passa o Dr. Gerardo:
— Então, não te deixam entrar?
João sorri delicadamente.
Passa a D. Gertrudes:
— Oh! Não me digas que a mãe ainda não chegou!
Quando vê o casal Meireles aparecer ao longe, João levanta-se, pega na pasta e muda--se para o banco do parque de estacionamento, do outro lado.
Talvez seja mesmo isso que em breve vai acontecer: ele fechado cá fora e eles, dentro casa, não deixam entrar. Logo se verá na próxima semana… A mãe tem um namorado. Há três anos que o pai morreu, tinha o João treze anos na altura; e agora a mãe arranjou um namorado.
Falara-lhe dele. Não é de cá, conhecera-o na casa de repouso depois da operação, na Primavera. Vem visitá-los na próxima semana e vai ficar instalado no escritório. Como quase não é usado desde que o pai morreu, põe-se lá uma cama.
— É só por dez dias — dissera a mãe.
Chega um carro de mobílias e estaciona com dificuldade num dos lugares vagos. Dois homens fortes saem a abanar os talões de entrega. Um deles vem direito a João:
— Há por aqui algum restaurante? É que nos enganámos no caminho e perdemos o almoço.
— Lá em cima, na povoação. Aqui, não.
— Ah, então vamos ter de comer aqui mesmo. Podemos? — pergunta o segundo. Sentam-se e começam a tirar umas sandes do saco da merenda.
A D. Julieta sai do carro com os dois filhos pequenos. Depois, é a enfermeira do 1º andar que regressa na sua motorizada. Em seguida, um carro que João não conhece estaciona no lugar do Engº Florismundo.
"Espero que o engenheiro não venha", pensa João. "Ele faz sempre um pé-de-vento... Até já chegou a chamar a polícia por invasão de propriedade. Oh, e que venha!" pensa João logo a seguir. "Ao menos havia alguma animação para ajudar a passar o tempo…"
Não é que o escritório seja um lugar sagrado, não é disso que se trata. João tem medo das mudanças, de… mas de que é que ele tem medo afinal?
— Não vou mentir-te — dissera a mãe — por isso quero dizer-te que gosto dele, do Bernardo. Gostava que tudo corresse bem, que tu gostasses dele. E acho que ele vai agradar-te — acrescentou.
"Espero bem que não", pensara João. "Espero que não dê certo. Espero que seja um mau tipo sobre quem não seja difícil decidir se gosto ou não."
A pequenita da D. Julieta aproxima-se dele. A bola saiu fora do parque infantil e João devolve-lha.
A menina agradece e vai embora a correr.
Os dois homens também vão. Chega agora um homem com uma pasta, senta-se no banco — Bom dia! — e começa a escrevinhar num bloco de papel. Talvez seja algum empregado de caixa.
João falara neste assunto a Geraldo. Em sigilo absoluto! Geraldo é um bom amigo e não é nada infantil quando o assunto são coisas sérias.
— Que idade tem a tua mãe? — perguntara o Geraldo.
— Trinta e seis ou trinta e sete.
— É óbvio — dissera o Geraldo. — Tens de entender. Com essa idade uma mulher ainda…
Fizera uma pausa e dera a entender o resto da frase com um sinal de cabeça cauteloso e aí João compreendera. Sem qualquer pré-aviso, pregou-lhe uma bofetada. Geraldo ficara terrivelmente assustado mas por pouco tempo… e reagira logo.
O empregado de caixa também foi embora e o dono do carro desconhecido atravessou o parque de estacionamento. "Ah", pensa o João. "O Engº Florismundo já não vai ter de se aborrecer. O senhor já vai sair."
Mas o homem não se vai embora. Veio só deixar uma coisa no carro e pegar outra. Um livro de bolso, pelos vistos. Olha em volta e encaminha-se para o banco de João. Senta-se na outra ponta sem uma palavra, de costas voltadas para ele. Tem um casaco de ganga e umas calças de veludo.
Pela maneira como se sentou e começou a ler sem fazer caso nenhum de João nem do que está à sua volta, não parece ser lá muito simpático.
Passa-lhe um pensamento maldoso pela cabeça. "Talvez se zangue", pensa João e maldosamente diz-lhe:
— Peço desculpa, mas estacionou num lugar reservado.
— E o que é que tem? — responde o outro sem se voltar.
— Só estou a dizer isto porque o dono do lugar pode fazer uma cena desagradável… Já chegou até a chamar a polícia…
Nesse momento o outro volta-se completamente e olha para João. Tem um bigode esquisito, olhos escuros com rugas à direita e à esquerda. Em vez de responder, aponta para o olho esquerdo de João e pergunta:
— O outro também?
João não percebe imediatamente mas depois acena com a cabeça.
— Sim, um pouco — a estalada de João não tivera o mesmo resultado que o soco de retaliação de Geraldo.
— E qual foi o motivo?
— Foi… foi por assuntos particulares.
— Ah, estou a perceber.
"Não percebes nada", pensa João.
— Para dizer a verdade, não estou a perceber nada — disse o homem. — Mas também não tem importância. — Depois sorriu e continuou:
— Andamos nós para aqui a fazer manifestações em favor da paz e, nos miúdos, as brigas continuam à larga. O que é que achas? O que pensas?
João encolhe os ombros.
— Não, a sério! O que é que pensas disto? Um — e encolhe os ombros — é muito pouco.
— Não sei — responde João. — Acho que um simples olho negro ainda não é sinónimo de guerra.
— Um olho negro não é sinónimo de guerra — repete o outro pensativamente. — Mas talvez comece por aí. Tenho certas dúvidas sobre a relação entre as brigas de escola e os movimentos pacifistas. Ainda não pensei bem no assunto mas acho que se devia reflectir a sério sobre isso, devia sim.
Reclina-se para trás e estica as pernas.
— Estou a falar a sério — acrescenta. — Claro que não só as brigas de escola mas as disputas das crianças no dia-a-dia, não achas?
João quer voltar a encolher os ombros, mas não o faz.
— Podes encolher os ombros à vontade — disse o homem. — Eu também não sei. Devia começar-se já em criança.
"Mais um maluco", pensa João.
Calam-se por um momento e o homem continua:
— Quanto ao lugar de estacionamento, claro que o dono ou inquilino, ou o que for, está no seu direito. Eu sou é demasiado preguiçoso para o ir tirar agora. Quando o dono vier ainda estou a tempo. Ou achas que ele também faz queixa por se desgastar o lugar?
— É bem capaz disso! — diz João a rir.
— Bem, ainda tenho de esperar mais um pouco. Não está ninguém na casa para onde quero ir.
João faz um aceno de cabeça.
O homem torna a virar-se para ele e olha mais de perto o olho negro com interesse.
— Doeu?
— Mais ou menos.
— Levaste pontos?
— Uhm.
— Uma vez, também fiz uma rachadela aqui — e apontou para a sobrancelha do olho direito.
— Mas não se vê nada — observa João.
— E na altura até cheguei a levar pontos.
— O outro também? — pergunta João atrevidamente.
O homem ri e bate com a mão no joelho.
— Não vais acreditar. Não havia mais ninguém! Eu vou pela sala às escuras à procura da porta da sala, às apalpadelas de braços esticados.
Estende os braços e fecha os olhos, provavelmente para mostrar como estava escuro como breu.
— E avanço, pé ante pé, a porta deve ser já aqui… E era, mas estava aberta. Eu passei-
-lhe com os braços de um lado e do outro e bati com a cabeça directamente na esquina da porta.
— Que mau! — disse João a rir-se.
— E tu ainda te ris? — disse o outro. — Que rapaz tão sem coração!
Nesse momento, a mãe entra no parque de estacionamento, passa pelo banco e olha. João levanta-se e diz:
— Adeus!
O desconhecido levanta-se e diz:
— Adeus!
A mãe sai do carro e sorri incrédula:
— Porque é que…
— Acabámos uma hora mais cedo… — responde João.
— Eu vim três dias mais cedo… — responde o desconhecido.
Mais tarde, num almoço feito à pressa a mãe pergunta:
— Sobre o que é que estiveram a conversar?
— Sobre o movimento de paz e cabeças rachadas — responde Bernardo.
A mãe está muito admirada.
— Uma coisa é esquisita — diz ela. — Vocês viram fotografias um do outro. Deviam ter-se reconhecido.
— O olho negro dele mudou-o muito — disse Bernardo.
— E o senhor… E na fotografia tu não tens bigode! — disse João.
Mais tarde, cada um vai tratar das suas coisas. Bernardo põe as camisas dentro do armário e pensa "Espero que ele perceba que gosto dele."
A mãe telefona à amiga para desmarcar o jantar e, enquanto espera que ela atenda, pensa "Parece que eles afinal… espero que dê certo. Esperemos."
João procura um lugar na sua colecção de minerais para o cristal que Bernardo lhe trouxe (Encontrei-o eu mesmo. Um dia mostro-te o lugar!). Claro que ele tinha de lhe oferecer alguma coisa. Precisava de se pôr nas minhas boas-graças.
Precisava mesmo?
João não se sente feliz. Não se sente feliz porque é tudo muito pouco claro, novo, diferente, ameaçador ou pelo menos emocionante, e tão rápido. No meio de todos estes pensamentos obscuros lembra-se – só por um instante – da história da porta aberta.
"Uma coisa ele não é", pensa João. "Um mau tipo!"
Em baixo, no parque estacionamento, o Engenheiro Florismundo, de pé em frente do carro desconhecido, escreve, por esta vez, uma carta muito pouco delicada, que prende no limpa pára-brisas.
Hans Domenego
Lene Mayer-Skumanz (org.)
Hoffentlich bald
Wien, Herder Verlag, 1986
Tradução e adaptação
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

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