sexta-feira, 2 de maio de 2008

Laura Flor



– Laura Flor, vem cá!
A Laura veio e era como uma flor. Delicada e suave flor igual ao nome.
Depois, foi a Maria Clara de tranças belas, castanhas, nariz arrebitado, sorriso claro – e Clara se chamava. A apertar a bata, na cintura, um cinto feito de papéis de lustro de cor, arco-íris naquela cintura de menina.
Depois, a Maria Odete, figurinha que parece ter saído de uma jarra, sempre com muitos cuidados a andar, a falar, jeito que lhe ficou de estar dentro da jarrinha. Uns olhos orientais, um sorriso que é quase choro, franjinha negra sobre os olhos à flor da pele.
– Maria Odete, se eu fosse ao Oriente e encontrasse uma flor, lembrava-me logo de ti!
– Pois é! Ela tem os olhos em bico!
– diz uma companheira, pronta a tirar conclusões.
Maria Odete começa a chorar. A caírem-lhe as lágrimas devagarinho, brilhantes, também com cuidado, lentas, luminosas.
Eu não sei o que vou dizer, mas digo. Não sei o que disse, mas Maria Odete sorri. Devagarinho, também as lágrimas acabam de cair.
A que disse que a Maria Odete tinha os olhos em bico é tal e qual uma maçã dourada, redonda, toda muito por igual: maçã suspensa, nítida, decidida.
As meninas todas olharam com admiração a flor do Oriente.
Eu é que não devia dizer estas coisas, eu é que tenho a culpa – pensar alto. Mas havia reparado ontem na Maria Odete a dizer-me que não tinha livro nenhum.
– Foi tudo na cheia de ontem, minha senhora...
– E nunca mais os viste?
– Nunca mais! A minha bata, apanhei-a hoje na valeta... Até o dinheiro que ficou está a secar, preso por molas.
Diz isto com uma vozinha de quem canta dentro da tal jarra.
- Sabe a senhora? As minhas vizinhas dizem que vão reclamar ao Ministro...
–...?
– Porque não arranjaram aquele cano... É por isso que eu hoje não trago bata nem tenho livro...
– …
– ... nem tenho dinheiro para comprar outro...

Diz isto tudo muito serena, com um ar de quem está a contar a história mais natural deste mundo. História tão cinzenta que na voz dela até parece um conto de fadas ao contrário.
A menina linda com os olhos à flor da pele, transparentes e escuros ao mesmo tempo. Puros. A infância desarmada.
– Senhor Ministro, devia ter mandado arranjar o cano. Não tenho livro, não tenho bata, o pouco dinheiro está a secar, preso por molas...
Tão serena. As lágrimas vagarosas de hoje – como meninas que saíram a passear para uma ilha imaginária.
Senhor Ministro, desça abaixo ao seu jardim...
Mas o Senhor Ministro não ouviu. Não desceu. Sabe lá o que é ter o pouco dinheiro preso por molas e os livros a irem na cheia.
E deve ter aprendido na escola, no liceu, que Camões salvou os Lusíadas a nado. E que deixou o fim do poema para Laura Flor escrever. Com uma peninha de rouxinol.

Matilde Rosa Araújo
As botas de meu pai
Lisboa, Livros Horizonte, 1977

Mais em
Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola S/3 Daniel Faria – Baltar

Sem comentários: