Os santos populares no nosso país são festejados no
tempo quente de Verão: Santo António, São João e São Pedro. No Inverno há
apenas um, que chega com o frio: São Martinho, que associamos à prova do vinho
novo e às castanhas.
Martinho nasceu no séc. IV em 316 ou 317 D.C. Terá
sido batizado, por volta do ano 339. São mais de 1600 anos de popularidade. Mas
saberemos mesmo quem foi São Martinho?
DE CAVALEIRO ROMANO A APÓSTOLO DA GÁLIA
Não podemos dizer que a vida de São Martinho «se perde
na noite dos tempos», porque este santo, nascido em território do império
romano - Sabaria na antiga Panónia, hoje Hungria, entre 315 e 317, foi o
primeiro santo do Ocidente a ter a sua biografia escrita por um seu contemporâneo
- o escritor Sulpício Severo.
Martinho era filho de um soldado do exército romano e,
como mandava a tradição, filho de militar segue a vida militar, como filho de
mercador é mercador e filho de pescador devia ser pescador. Martinho estudou em
Pavia, para onde a família foi viver, e entrou para o exército com 15 anos,
tendo chegado a cavaleiro da guarda imperial. Tinha a religião dos seus
antepassados, deuses que faziam parte da mitologia dos romanos, deuses
venerados no Império Romano, que, como é óbvio, variavam um pouco de região
para região, dada a imensidão do Império. As Gálias teriam os seus deuses
próprios, como os tinham a Germânia ou a Hispânia.
O jovem Martinho não estava insensível á religião
pregada, três séculos antes, por um homem bom de Nazaré. Um dia aconteceu um
facto que o marcou para toda a vida. Numa noite fria e chuvosa de Inverno, às
portas de Amiens (França), Martinho, ia a cavalo, provavelmente, no ano de 338,
quando viu um pobre com ar miserável e quase nu, que lhe pediu esmola e
Martinho, que não levava consigo qualquer moeda, num gesto de solidariedade,
cortou ao meio a sua capa (clâmide) que entregou ao mendigo para se agasalhar.
Os seus companheiros de armas riram-se dele, porque ficara com a capa rasgada.
Segundo a lenda, de imediato, a chuva parou e os raios de sol irromperam por
entre as nuvens. Sinal do céu. Seria milagre?
MARTINHO E CONSTANTINO I
Conta a lenda, que no dia seguinte Martinho teve uma
visão e ouviu uma voz que lhe disse: «Cada vez que fizeres o bem ao mais
pequeno (no sentido social de mais desprotegido) dos teus irmãos é a mim que o
fazes». A partir desse dia Martinho passa a olhar para os cristãos de outro
modo. Recordamos que o Cristianismo teve dificuldade em se impor como religião,
e que um passo importante dado, nesse sentido, foi por Constantino I, que, em
313, permite que o Catolicismo seja livremente praticado no Império. Com o
tempo foi aceite como religião do Estado.
Constantino- o Grande - acreditou que o deus dos
cristãos, que ele, de início associava ao Sol, o protegia e que lhe
proporcionara a grande vitória contra Maxêncio, em 312. Acabará senhor absoluto
do Império, tanto a Oriente, como a Ocidente, depois da vitória sobre Licínio,
em 324. Consta que Constantino I terá visto no céu, antes da batalha com
Maxêncio, a frase: «In Hoc Signo Vinces (Por este símbolo (cruz de Cristo)
vencerás)» e daí o início da sua conversão. A testemunhar essa conversão existe
o Arco de Constantino, em Roma, erigido para celebrar a vitória, onde consta a
frase «por inspiração da Divindade e pela sua (de Constantino) grandeza de
espírito». A testemunhar a sua conversão há o facto de o prefeito pretoriano da Hispânia, Acílio Severo, conhecido por
Lactâncio ter sido o primeiro prefeito cristão de Roma, em 326.
Constantino I fundou a cidade de Constantinopla, onde
fez a nova capital do Império, na antiga Bizâncio, e mandou edificar inúmeras
igrejas, para o culto cristão, por todo o Império. A cidade foi sagrada no ano
330. As mais importantes igrejas foram a basílica de Latrão, a igreja de São
Pedro, em Roma, a igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, bem como basílicas em
Numídia e em Trèves. Deu-se origem às fundações da Igreja da Santa Sabedoria
(Hagia Sophia), em Constantinopla, que, viria, em 1453 a ser tomada pelos
árabes e Constantinopla passou a chamar-se Istambul. Constantino I é batizado
no leito de morte, no ano de 337 e sepultado na basílica dos Apóstolos naquela
cidade. Deixa o império dividido pelos seus três filhos Constantino II,
Constâncio e Constante, que vão lutar entre si ficando senhor do Império
Constâncio II.
A LENDA DE S.MARTINHO
Depois do encontro de Martinho com o pobre que seria o
próprio Jesus, sente-se um homem novo e é batizado, na Páscoa de 337 ou 339.
Martinho entende que não pode perseguir os seus irmãos na fé. Percebe, que os
outros são, na realidade, mais seus irmãos que inimigos. Só tem uma solução - o
exílio, porque, oficialmente, só podia sair do exército com 40 anos. Hoje o
sentido de irmão está, no Ocidente, perfeitamente interiorizado, mas, na época
era algo de totalmente revolucionário. Era uma sociedade estratificada, e os
grandes senhores, onde se incluía a classe militar, não se misturavam com a
plebe, e muito menos um escravo era considerada pessoa humana. Daí Cristo ter
sido crucificado. O amor entre todos, como irmãos que pregava era
verdadeiramente contra os usos do tempo. Todos o que o seguiram e praticaram a
solidariedade eram vistos como marginais e mais ou menos perseguidos.
Martinho, ainda militar, mas com uma dispensa vai ter
com Hilário (mais tarde Santo Hilário) a Poitiers. Em primeiro lugar, funda o
mosteiro de Ligugé e depois o mosteiro de Marmoutier, perto de Tour, com um
seminário. Entretanto a sua fama espalha-se. Muitos homens vão seguir Martinho
e optar pela vida monástica. Com o tempo, as suas pregações, o seu exemplo de
despojamento e simplicidade, fazem dele um homem considerado santo. É aclamado
bispo de Tours, provavelmente em Julho de 371. Preocupado com a família, lá
longe, e com todo o entusiasmo de um convertido vai à Hungria visitar a família
e converte a mãe.
A vida de São Martinho foi dedicada à pregação. Como
era prática no tempo, mandou destruir templos de deuses considerados pagãos,
introduziu festas religiosas cristãs e defende a independência da Igreja do
poder político, o que era muito avançado para a época. Nem sempre a sua acção
foi bem aceite, daí ter sido repudiado, e, por vezes, maltratado.
VITA MARTINI
Sulpício Severo, aristocrata romano, culto e rico fica
fascinado com o comportamento pouco comum de Martinho e escreve, entre 394 e
397 a biografia, daquele que ficaria conhecido por São Martinho de Tours. A
obra chama-se apenas Vita Martini (escrito em latim), livro que teve enorme
repercussão no mundo medieval. Espalhou-se até Cartago, Alexandria e Síria.
Sabe-se que este livro foi muitíssimo lido (Enciclopedia Cattolica, Cidade do
Vaticano, 1952, p. 220), o que era difícil numa época em que os livros eram
caros e quando só o clero e monarcas mais cultos os leriam, mas o certo é que
foi um verdadeiro «best-seller».
Só em 357 Martinho é dispensado oficialmente do
exército e continua a espalhar a sua fé. Morre em Candes, no dia 8 de Novembro
do ano de 397 e o seu corpo foi acompanhado por 2000 monges, muito povo e
mulheres devotas. Chega à cidade de Tours no dia 11 de Novembro. O seu culto
começou logo após a sua morte. Em 444 foi elevada uma capela no local. Não
foram só as gentes das Gálias que o veneraram, o seu culto espalhou-se por todo
o Ocidente e parte do Oriente. Na cidade francesa de Tours, foi erguida uma
enorme basílica entre 458 e 489 que viria a ser lugar de peregrinação, durante
séculos. Em França há perto de 300 cidades e povoações com o nome de São
Martinho e, em Portugal, numa breve contagem, descobrimos 60. É, no entanto,
importante frisar que nem todas serão evocações de São Martinho (o da capa),
mas também de São Martinho de Dume (na região de Braga), também originário da
Hungria (séc. VI).
Por toda a Europa os festejos em honra de São Martinho
estão relacionados com cultos da terra, das previsões do ano agrícola, com
festas e canções desejando abundância e, nos países vinícolas, do Sul da
Europa, com o vinho novo e a água-pé. Daí os adágios «Pelo São Martinho vai à
adega e prova o teu vinho» ou «Castanhas e vinho pelo São Martinho».
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