quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Entrelaçadas


Na Primavera de 1943, Lillian Scott deu à luz gémeas. As crianças eram muito semelhantes e tinham sido concebidas no mesmo momento. Com os seus vestidinhos iguais, aconchegadas todas as noites na mesma cama, eram também profundamente diferentes. Joyce, a primeira a nascer, era uma bebé saudável, destinada a enfrentar os desafios e os triunfos daquilo que se costuma designar como uma vida normal. Judith veio a este mundo com os traços faciais enfezados e achatados, próprios da síndroma de Down. Embora na altura não se pudesse ainda saber, viria a revelar também uma surdez profunda.
Apesar do abismo entre ambas, abismo esse que se foi aprofundando com os anos, Joyce Scott vai contar-nos que, a partir do momento em que se nasce gémeo, é-se gémeo para toda a vida. Joyce entrou na vida activa, foi mãe e tornou-se profissional da saúde, mas nunca deixou de ter a irmã no pensamento, ainda que esta vivesse numa instituição longínqua. Com o tempo, porém, a distância entre ambas, quer do ponto de vista literal, quer metafórico, começou a fazê-la sofrer. Esta é a história de como Joyce e Judith voltaram a reunir-se e de como, de várias maneiras, se salvaram uma à outra.
No início, as crianças eram inseparáveis. Deixadas entregues às suas próprias brincadeiras pelos três irmãos mais velhos, passavam longas tardes entretidas no quintal dos subúrbios de Cincinnati, a brincar às casinhas e a inventar jogos. Mas à medida que os anos passavam, as diferenças entre ambas iam-se acentuando. Joyce fazia as etapas do desenvolvimento normal, Judith ficava muito atrás. Joyce já construía frases completas, Judith apenas balbuciava. «Queria tanto comunicar com ela!», diz Joyce, actualmente com 60 anos. «Fazia de conta que ela falava. E nos meus sonhos falava!»
Chegada a altura de irem para a escola, Judith fez testes, na esperança de ser admitida na única escola pública para crianças com dificuldades de aprendizagem. Mas não conseguiu responder à maior parte das perguntas. «Ninguém se apercebeu de que era surda», diz Joyce. «Aponta o círculo», disse-lhe o psicólogo. Mas ela nem sequer conhecia as palavras. Nessa época, as famílias raramente mantinham em casa os filhos com deficiências profundas, e a pressão para mandar Judith para fora começou a aumentar. «Falámos com o padre, com os psicólogos, e todos nos disseram a mesma coisa, que devíamos interná-la numa instituição», diz Lillian, agora com 91 anos. «Senti que se me partia o coração.»
Numa manhã de Outono, aos 7 anos e meio, Joyce acordou e deparou com um lugar vazio na cama da irmã. Os pais explicaram-lhe que a Judith ia para um sítio onde havia pessoas mais aptas a tomar conta dela. Joyce lembra-se de se ter sentido profundamente desolada. «Lembro-me daquela sensação extrema de solidão e de vazio sem ela.»
Sempre que podia, a família visitava Judith na fria e labiríntica Estadual de Columbus, que ficava a três horas de distância de carro. Ao fim de cinco anos, Judith foi transferida para o Centro de Desenvolvimento Gallipolis, um pouco mais moderno que a escola anterior, mas ainda mais longe de casa. As visitas da família foram rareando, sobretudo depois da morte do pai, em 1956, o que deixou Lillian sozinha e com quatro filhos para criar.
Mas mesmo em Gallipolis, Judith recebeu pouca educação e formação. Nunca aprendeu a falar, a ler ou a escrever, e nem após lhe ter sido diagnosticada a surdez, por volta dos 30 anos, lhe ensinaram a linguagem gestual.
Entretanto, Joyce cresceu, entrou para a faculdade e mais tarde mudou-se para a Califórnia, onde se casou, constituiu família e fez carreira como enfermeira. Meses, por vezes anos, decorreram entre as viagens ao Ohio para visitar Judith. Ilana, a filha de Joyce, lembra-se de aos 9 anos ter acompanhado a mãe e ter visto a tia Judy pela primeira vez. «Há anos que não se viam, mas quando a Judy deparou com a minha mãe, reconheceu-a logo. A mamã só conseguiu soluçar.»
Em 1985, Joyce, que tinha começado a trabalhar com doentes terminais e precisava de recarregar as baterias, fez um retiro nas montanhas de Santa Cruz, nos arredores de São Francisco. Durante as horas que passou sozinha, a lembrança da irmã consumiu-a. «É diferente estar-se naquele silêncio», diz Joyce. «Não só me apercebi de como a nossa relação era profunda, como de que não havia razão para que estivéssemos separadas.» Antes do fim do retiro, decidiu que ela e Judy passariam o resto da vida juntas.
Joyce fez as diligências necessárias para se tornar a responsável legal da irmã, e um ano depois trouxe-a para a Califórnia. Depressa encontrou um centro de dia perto de casa, em Berkeley, onde Judith poderia receber os cuidados diários de que necessitava. E, a conselho de um psicólogo amigo, inscreveu-a nas aulas do Centro de Arte de Desenvolvimento Criativo, um estúdio de arte para pessoas com deficiência.
O armazém aberto e arejado onde os artistas dão aulas de pintura, cerâmica e tapeçaria é um local espantoso, explica Joyce. «Há uma enorme sensação de liberdade e de criatividade.» Durante os primeiros meses, Judith chegava às aulas todas as manhãs e limitava-se a sentar-se a uma das grandes mesas e a fixar o olhar vago, enquanto os formadores lhe iam passando argila, tinta e lápis de cor para trabalhar. «Era intratável e teimosa», diz Sylvia Seventy, que lhe deu aulas no centro. «Por mais que tentássemos levá-la a fazer qualquer coisa, não se mexia.»
Até que a situação mudou. «Ela é engraçada e eu também», diz Sylvia. «Pus-me a imitar as expressões dela e consegui pô-la a rir. E assim começou a apreciar-me.»
Sylvia iniciou o trabalho com Judith numa tela de tapete, ensinando-a a coser com uma agulha de tecelagem e fio de lã. «Ela cosia e cosia até preencher uma boa área», diz a formadora. Um dia, começou a enrolar lã à volta de um feixe de vimes. E acrescentou cordel, tecido, rede de arame e tábuas à criação artística.
«Desde que começou a trabalhar com lã e desperdícios, foi como se encontrasse uma voz para exprimir algo que até então nunca conseguira exprimir», diz Stan Peterson, outro professor do centro. Nos meses seguintes, Judith desenvolveu um estilo próprio e singular. Começou por utilizar objectos de refugo, como uma prancha de skate, uma ventoinha partida, madeira, um sapato, e a envolvê-los com fio de lã ou cordel, trabalhando horas a fio até o objecto inicial ficar irreconhecível. Alguns dos seus trabalhos atingiram tais proporções que foram precisos dois homens para os carregar.
Embora a maior parte tivesse formas abstractas, algumas das peças iniciais tinham uma certa semelhança com bonecas. Judith chamou à sua primeira escultura tridimensional «Baba» e embalou-a nos braços. Fez também um par de figuras enroladas em lã preta. Joyce chorou ao vê-las e pensou: «Somos nós.»
Em 1989, Frank Maresca, co-proprietário da Galeria de Arte Ricco/Maresca, de Nova Iorque, que expõe trabalhos de artistas marginais e autodidactas, visitou o Grupo Criativo e ficou encantado com o trabalho de Judith. «Era algo diferente de tudo o que eu já vira, aqueles casulos muito texturados que escondiam sabe-se lá o quê no seu âmago», diz Maresca. «Senti-me atraído pelo exterior e envolvido pelo mistério do interior.»
Maresca começou a expor e a vender os trabalhos de Judith, tendo alguns deles atingido o preço de 15 000 dólares. (A maior parte das necessidades financeiras de Judith é coberta pela Segurança Social, pelo que os seus proventos são depositados na sua conta bancária.)
A fama da sua arte foi-se espalhando, e os curadores de museus começaram a aparecer para a conhecerem e verem as enigmáticas esculturas de fibra. Nos últimos anos, o seu trabalho tem sido exposto em museus e galerias de Chicago, São Francisco, Paris e Tóquio. Em 1999, o historiador de arte John M. MacGregor traçou o perfil da artista no livro Metamorfoses: A Arte de Fibra de Judith Scott. No ano passado, o Museu Norte-Americano de Arte Popular acolheu cinco peças da colecção de Judith.
Joyce diz que, embora Judith não tenha consciência da fama, sofreu transformações com a atenção pública. «Está mais sociável agora», diz ela. «Dantes, era desconfiada, calada, fechada em si mesma. Agora, irradia amor pela vida.» Joyce também mudou. «Quando a Judy estava no lar, sentia que me faltava uma parte. Agora que estamos juntas e que a vejo desabrochar sinto-me muito melhor. Que bem me sinto por estar perto dela!»
Numa recente manhã de sol, Judith senta-se no cantinho habitual, no estúdio de arte de tijolo e vidro, a trabalhar na última peça, um guarda-sol partido envolto em fio de lã de múltiplas cores. Com calma e método, corta 1 m de fio azul-claro de um novelo, passa-o pelas varetas meio cobertas do guarda-sol, ata-o, enrola-o, corta-o e recomeça com um novo fio de lã. Esta mulher pequena e rechonchuda, de cabelo às farripas, concentra-se no trabalho, que apenas interrompe de vez em quando para saborear uma Diet Pepsi.
Mal a irmã entra na sala, Judith abre-se num sorriso. Balança como uma criança, abrindo e fechando a mão. Joyce abraça-a. Aperta-lhe as mãos e beija-lhe a face. Uma gémea é-o para sempre.
Rachele Kanigel
Selecções do Reader's Digest
Março – 2004
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

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