António é um amigo. Trabalha num restaurante à beira da estrada.
A história de António não é alegre. Porque não vos hei-de contar a história de um menino feliz? Uma história alegre?
Mas António está ali. Ali, no meio de todos nós. É criança e trabalha.
Tem o pai doente. Muitos irmãos.
A primeira vez que o vi foi num dia quente de Verão. Um calor de escaldar.
Comoveu-me a sua delicadeza. Um pouco gago e querendo, na sua gaguez, dizer tanta palavra amável, boa. Os olhos piscos a tremerem, passarinhos espantados.
Há quem se ria dos gagos. E, afinal, um susto que apanhássemos em criança, um modo mais delicado de olhar a vida podem dar-nos essas pausas na voz, essa distância entre a palavra que se vai dizer e o pensamento.
As pessoas que vão comer ao restaurante vão comer bem. Olham a ementa e não olham o António. Olham a conta e não olham o António.
E o António tem fome: não da comida do restaurante, mas de ternura, de palavras boas.
É muito magrinho o António! Para além da tal fome.
Se me lembro dele, lembro-me de um choupo pequenino que vi numa madrugada, ia de comboio.
Fazia vento e a madrugada molhava-se de azul. E o choupo abanava sozinho.
António também abana. E vou explicar porquê.
Naquele dia de muito calor (quando o conheci), António vendeu-me um postal ilustrado, daqueles que os hotéis e os restaurantes têm nos balcões de recepção, para os turistas. Brilhantes e frios.
Reparei nas suas mãos ainda de criança.
— Que-que-ri-a es-es-te?
Eu queria.
E reparava nas suas mãos de criança que deviam ainda estar sobre a carteira da escola. E estavam ali.
Reparei. E o meu olhar subiu das mãos para os pulsos.
E vi, naquele dia de calor tão grande, duas mangas de camisola usada aparecerem debaixo da farda cinzenta, cheia de botões, de António.
Estaria doente?
— Tens frio, António? Está tanto calor! Estarás doente?
— Fri-fri-o não, mi-mi-nha senho-nho-ra.
E os seus olhos passarinhos negros mais estremeciam, gaguejavam também.
— Então?
Porque se não adivinha, porque se fazem perguntas cruéis? Sem o querermos...
António estremeceu todo ele.
— A a far-far-da é mui-mui-to gran-grande, é é pa-para não os-os-ci-lar...
O verbo oscilar. Gaguejado.
Um corpo magro dentro de uma farda cinzenta que criança nenhuma devia usar.
Oscilar dentro do fato. Um fato que não foi para a nossa medida. O choupo novo e magrinho que vi molhado de azul na madrugada, no correr do comboio. Igual. Estremecendo. Só.
António é meu amigo, nosso amigo. E nós é que não devemos gaguejar a nossa amizade nunca, a amizade que devemos a todos os Antónios.
Um choupo, quando passamos no comboio, fica na estrada. De madrugada, de dia, de noite. E, mesmo assim, está só. Mas o António?
— O-o-bri-bri-gado!
— De quê, António?
Tive uma vontade imensa de lhe pedir perdão. O coração a oscilar.
Adivinha porquê.
O próprio nome António estremece.
E esta história, escuso de vos dizer, é verdadeira. E eu, como se estivesse envolvida num lençol do mundo, cheia de frio, vim escrevê-la aqui.
Matilde Rosa Araújo
O gato dourado
Lisboa, Livros Horizonte, 1985
adaptado
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
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