quarta-feira, 17 de junho de 2009

O homem que tinha uma árvore na cabeça - 1ª parte

O homem que tinha uma árvore na cabeça
Era uma vez um homem que tinha uma árvore na cabeça. No princípio era apenas um arbusto com folhas esguias e acastanhadas. Depois os ramos começaram a engrossar e as folhas a ganhar largura e uma cor mais viçosa. Era uma verdadeira árvore, alta, pujante e bonita. O homem, quando o arbusto começou a ganhar forma no meio da sua cabeça, ficou assustado. Quem é que não ficava? Depois foi-se habituando. Quando o arbusto se transformou em árvore, passou a senti-la como coisa sua, como uma parte de si mesmo. Apenas o incomodava o peso que tinham o tronco e os ramos, obrigando-o, por vezes, a vergar o pescoço em direcção à terra.
O homem não era alto nem forte. A sua pele era pálida e faltava uma luz que iluminasse os seus olhos e tirasse deles a tristeza que os tornava mortiços e graves. Era um homem de muito poucas falas e, talvez por isso, poucas pessoas sabiam o seu nome. Chamava--se Tenório, mas, como tinha uma árvore na cabeça, passaram a tratá-lo por outro nome, mais engraçado e fácil de decorar: Arbóreo.
O homem não gostava do nome, mas não tinha possibilidade de escolher outro. Fora inventado pela maioria das pessoas que o conheciam, que com ele se cruzavam na rua, que o viam debruçado à janela, que o confundiam com a mancha verde das florestas e dos jardins. Que havia ele de fazer? Chamavam-lhe Arbóreo e era por esse nome, e só por ele, que ia ficar conhecido.
Um dia Arbóreo, quando a Primavera estava à porta, gostou do cheiro adocicado que lhe entrava pelas narinas e pensou: de onde virá este cheiro tão doce, tão bom? Não encontrou resposta. Aquele cheiro abria-lhe o apetite e dava-lhe um grande bem-estar. De onde viria ele?
Levou a mão até aos ramos da árvore que tinha na cabeça e sentiu umas formas macias e arredondadas. Como na terra onde vivia existiam poucos espelhos, correu até ao rio e, esperando que as águas estivessem calmas, viu nelas a sua imagem reflectida. Então exclamou: «São frutos!»
Eram realmente frutos, embora não fossem nem pêssegos, nem peras, nem maçãs. Eram redondos e sumarentos. Eram diferentes de todos os que até então tinha cheirado ou comido. Que frutos seriam?
Enquanto trincava uns e arrancava outros com cuidado para os guardar num pequeno saco de pano que levava na mão, pensou: «É engraçado, têm o mesmo gosto de certas ideias que me passam pela cabeça». E não estava longe da verdade. É que, se os frutos nasciam da árvore que tinha na cabeça, era natural que tivessem um paladar parecido com o de certas ideias.
Uma das coisas que Arbóreo gostava de fazer era dormir a sesta debaixo das árvores de copas largas que havia na cidade onde morava. Agora já não precisava de as procurar. Podia dormir à sua própria sombra. Não era uma sombra grande, mas dava perfeitamente para se refrescar e para ouvir em sossego o chilrear dos pássaros.
Os pássaros. Sim, os pássaros. Gostavam de vir poisar nos seus ramos, buscar o abrigo das suas folhas largas e verdes, encontrar um sítio descansado para passarem a noite.
Arbóreo sabia de cor o canto dos pássaros e percebia neles uma fala que era diferente da que usavam as pessoas, mas que servia para se entenderem.
Eram bonitos os pássaros. Uns eram pintassilgos, outros melros, outros ainda tentilhões ou pardais. Todos tinham as suas rotas, os seus hábitos, os seus modos de aproveitar os embalos do vento.
Arbóreo gostava de ser acordado pelo chilreio da passarada e pelo riso das crianças que atravessavam os grandes terreiros da cidade a brincar a tudo aquilo que lhes dava na cabeça, inventando guerras, perseguições e casamentos, duelos e julgamentos.
– Vamos roubar um dos frutos da cabeça de Arbóreo – gritou um miúdo sardento, enquanto ele dormia debaixo do cogumelo da sua copa larga.
Logo os outros, que com ele andavam em fingimentos de guerra e de paz, se apressaram a fazer coro:
– Vamos deixá-lo careca de frutos!
Foi com o som áspero desta frase que Arbóreo acordou, interrogando os seus visitantes.
– Que vem a ser isso de careca de frutos?
– Se quem não tem cabelos na cabeça é careca – respondeu um deles – quem deixa de ter frutos fica careca de frutos.
Os governantes da cidade não gostavam que Arbóreo tivesse uma árvore na cabeça, porque era o tipo de liberdades que não costumavam conceder aos seus cidadãos. Para se ter uma árvore na cabeça, um castelo no nariz ou um diamante num olho, era preciso ter uma autorização especial. Arbóreo não tinha. Por isso recebeu a visita nocturna de um grupo de soldados que o levaram até ao palácio do governador para ser interrogado.
– Como foi que te apareceu uma árvore na cabeça? – inquiriu o chefe dos guardas.
– Isso gostava eu de saber – respondeu Arbóreo, com a voz entaramelada pela aflição em que estava. É que nunca se tinha visto em apuros daqueles, à frente de homens fardados e carrancudos, a ter de responder a perguntas para as quais não encontrava resposta. E tudo isso porque tinha uma árvore na cabeça.
– Diz-se que à tua sombra – acusou o chefe dos guardas – costumam reunir-se os que conspiram contra os nossos governantes.
– Como – perguntou Arbóreo, espantado – se a sombra que a minha árvore dá é tão pequenina que só chega para mim?
– Os conspiradores – respondeu o inquiridor – também não são muito grandes.
– Mas – insistiu Arbóreo – eu garanto que nunca os vi debaixo da minha sombra e que, mesmo que os tivesse visto, dificilmente teria percebido o que diziam.
Registadas todas estas palavras num grande livro de capa negra, reuniram-se os guardas para decidirem que destino haviam de dar a Arbóreo, acabando por libertá-lo ao fim de algumas horas.
– Acreditamos que não tens grandes culpas – disseram-lhe – mas, ainda assim, ficarás sob vigilância, não vás envolver-te nalguma conspiração.
Quando Arbóreo deixou o palácio do governador, estava contente por se encontrar de novo em liberdade, mas, ao mesmo tempo, sentia tristeza por ter estado preso sem razão. Talvez por isso, o sol que envolvia a cidade, lhe pareceu pálido e envergonhado, num trapézio de nuvens pequeninas, lá em cima no meio do grande azul da tarde.
A cidade onde Arbóreo vivia chamava-se Praga e era uma das cidades mais belas do seu tempo, com monumentos altos e limpos, com pontes arqueadas sobre as águas do rio e com parques e bairros cheios de cor e de alegria. Ali chegou, por esses dias, um estudioso dos astros chamado Kepler, que vinha com a família de uma outra cidade chamada Graz, onde tinha havido grande agitação provocada pela perseguição que o arquiduque católico moveu contra os protestantes. Guerras de religião.
Entre as escolas mandadas encerrar encontrava-se aquela onde Kepler era professor, diga-se, com muitos conhecimentos sobre muitas matérias, mas bastante distraído e pouco organizado na maneira de explicar as suas ideias.
Com o astrónomo viajavam a mulher, pessoa doente e infeliz e uma enteada. Haveres tinham poucos, o que fazia com que não pudessem dispor de criados. De resto, como a saída de Graz tinha sido feita à pressa, transportaram para Praga apenas algumas mudas de roupa e duas ou três peças de mobiliário. Nada mais.
Em Praga, Kepler encontrou boas condições para trabalhar e para fazer os seus estudos e investigações. Era um homem de poucas falas, com ar sonhador e uma maneira estranha de olhar o céu e os corpos celestes. No fundo, era esse o mundo que ele compreendia.
E houve um dia em que o seu caminho se cruzou com o de Arbóreo. Foi assim: Kepler, aborrecido com o mau ambiente que tinha em casa, provocado pela incompreensão da mulher em relação ao seu trabalho de astrónomo, gostava de dar longos passeios pelos jardins da cidade Atravessava a Ponte Carlos, percorria com passo lento a íngreme Rua dos Alquimistas, e depois ia sentar-se à sombra de uma árvore a fazer mentalmente os seus cálculos e difíceis operações matemáticas.
continua…
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

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