Uma  oficina diferente
Aboubacar  trancou a porta da sua oficina com um suspiro cansado mas satisfeito. O dia fora  longo. Parecia que todas as motas e motocicletas da cidade tinham decidido  avariar naquele dia. Felizmente não lhe faltavam clientes. Alguns diziam que não  havia melhor mecânico em toda a capital, Ouagadougou, outros diziam que em todo  o Burquina Faso! Aboubacar sorria modestamente. Sabia bem que, quando os  clientes que tinham chegado suados a empurrar a motoreta sob o sol intenso  regressavam a casa montados nela, não se poupavam a elogios… de alívio e de  felicidade!
A  meio dos quarenta, Aboubacar era o filho mais velho de uma família numerosa.  Ainda pequeno, os pais tinham-no enviado para casa de um parente afastado que  vivia na capital, para aprender um ofício e ser mais tarde o chefe da família,  como era a tradição. Um vizinho mecânico, a quem todos tratavam carinhosamente  por TioAssouf, gostou daquele  rapazinho de olhar vivo e curioso, e acabou por levá-lo para a sua oficina. A  família afeiçoou-se a Aboubacar, e como os filhos de Assouf tinham partido para  França, este acabou por passar a viver em casa dele.
Ao  final do dia, o Tio Assouf gostava de se sentar à porta de casa a fumar e a ler  o jornal. Certo dia, o rapazinho perguntou-lhe:
—  Tio Assouf, o que está a fazer com esses papéis nas mãos? 
—  Estou a ler o jornal, Aboubacar — respondeu-lhe seriamente.  
—  E porque é que está sempre a ver os mesmos papéis? 
—  Aboubacar, eu não estou a ver, estou a LER — disse-lhe. — E isto é um jornal.  Aqui estão escritas as coisas mais importantes que acontecem no nosso país.  Chega cá.
E  perguntou-lhe em tom mais baixo:
—  Tu sabes ler?
—  Não.
—  Humm… é pena… podias ajudar-me aqui numa frase que não consigo ler. Sabes,  quando tinha a tua idade, não tive a sorte de poder ir para a escola todos os  dias e aprendi só um bocadinho. Mas como tinha muita vontade, fui continuando a  aprender sozinho. Mas há algumas palavras que não sei ler muito bem, e outras  que não percebo, porque são novas. É por isso que demoro muitos dias, quer  dizer… Bem… digamos que leio mais devagar. Mas… espera aí! Se não sabes ler,  como é que descobriste que estou com o mesmo jornal?
—  Porque há dois dias que vejo sempre a mesma imagem na parte de trás da página —  respondeu Aboubacar.
—  Tu és esperto, rapaz! — exclamou o Tio Assouf, passando-lhe a mão pela cabeça e  soltando uma gargalhada jovial. De repente parou, com os olhos fixos em  Aboubacar e disse-lhe, com um largo sorriso radioso:
 — Como é que eu não pensei nisto mais cedo! TU  é que vais aprender a ler e a escrever. E vamos ver se conseguimos que seja já  na próxima semana! De manhã, escola. De tarde, logo se vê.
—  Tio Assouf, eu tenho de trabalhar na oficina. É por isso que estou aqui!  
—  Não, Aboubacar. Aprender a ler e a escrever, a pensar sozinho e a compreender o  que se passa à nossa volta é mil vezes mais importante. Até para trabalhar na  oficina. Sabes fazer melhor as contas, percebes melhor o que fazes, podes ler e  aprender coisas novas em livros e não demoras uma semana para ler um jornal de  cinco folhas, como eu. Amanhã mesmo vou falar com o professor e logo se vê se  podes ir para a escola normal ou juntar-te ao grupo de crianças cá do bairro a  quem dá aulas em casa ao fim do dia. Anda, vamos jantar e contar tudo à Tia  Esther.
A  esposa de Assouf ficou radiante com a perspetiva de oferecer um futuro mais  promissor a Aboubacar. Ela própria lamentava ter sido obrigada a ficar em casa e  a ocupar-se unicamente das tarefas domésticas. Sentia que as raparigas não  deviam ter um tratamento diferente dos rapazes. Por que razão não as mandavam à  escola e as retiravam de lá quando eram precisas em casa? Se eram elas que iam  ao mercado, que vendiam e faziam as compras? E dizia o que pensava em voz alta,  sem vergonha do que pudessem pensar:
—  As mulheres são tão capazes como os homens!
Decididamente,  a família do Tio Assouf era muito diferente das normais, e não admira que  Aboubacar se tivesse empenhado ao máximo em aprender avidamente tudo o que lhe  ensinavam, quer fosse na escola ou na oficina, e escutasse com atenção as  conversas de Assouf e da esposa e se começasse também a questionar sobre  determinados assuntos.
Assim,  de cada vez que fechava a oficina, que fora a de Assouf, Aboubacar nunca deixava  de pensar nele e na esposa, e agradecia-lhes as oportunidades que lhe tinham  dado.
♦♦♦
Naquele  dia tão quente, Aboubacar ainda tinha tempo, antes do jantar, para se juntar aos  amigos no largo, debaixo da árvore de mangas.
—  Então, Abubacar, que tal o dia? — saudaram os amigos quando o viram chegar.  
—  Bebe uma cerveja — convidou-o Salit. — Com este calor, qualquer dia vais ter de  comprar um ar condicionado para a oficina!
—  Ar condicionado? Isso é para ti, que trabalhas para o  estado…
—  Sim, mas também não faz grande falta. À velocidade com que carimbam os papéis,  não devem aquecer muito! — riu-se Aziz. 
—  Valia mais gastar o dinheiro num despertador. Passam o tempo a dormir, qualquer  dia ainda ficam lá fechados de noite! — riu-se outro.
—  Se o negócio continuar assim, precisava era de meter um… — começou  Aboubacar.
—  Olha, quem tem mais um em casa, sou eu.
—  Vais ter outro filho?
—  Não, tenho uma cunhada da sobrinha da minha mulher. Diz que o marido a tratava  mal e resolveu fugir… Apareceu lá em casa cheia de nódoas negras, quase sem  forças e lavada em lágrimas. Imaginem que caminhou dois dias inteiros. Vinha num  estado miserável! A pena que metia!
—  Coitada! Não consigo entender porque é que alguns maridos tratam tão mal as  mulheres! Uma prima da Srª Maimouna, a que vende bolos no mercado, também fugiu  para cá. 
—  Tratar mal? Mas as mulheres querem-se em casa a trabalhar e a ter filhos! E as  filhas devem casar-se o mais depressa — ripostou o velho  Suleiman.
—  Porquê? Isso não é vida. Porque não hão de saber ler e escrever, ir à escola,  trabalhar em qualquer lado, serem tratadas com respeito? São tão capazes como os  homens. Olha a prima da Srª Maimouna. Tirou um curso de costura e agora trabalha  em casa como costureira. Aprendeu a ler e consegue costurar a partir dessas  revistas de costura modernas.
—  Ora, lá vens tu com as tuas modernices, Abubacar — continuou  Suleiman.
—  Não são modernices. Vocês, Salit, não têm mulheres lá no escritório? E não fazem  o mesmo trabalho? 
—  Sim, são da família do chefe. E… a verdade é que até não trabalham mal, quero  dizer… bem… despacham as coisas mais depressa, lá isso é… E já que falas na  prima da Srª Mamouna, a minha mulher já lá mandou coser uns tecidos e diz que  não quer mais ninguém. 
—  Veem? Então?
—  Pode ser, mas não acho bem. Só tive rapazes, mas se tivesse  filhas…
—  Pensavas de maneira diferente — atalhou rapidamente  Abubacar.
—  Ai, sim? Tu e as tuas ideias do costume. Se são tão boas como os homens,  Abubacar, porque não metes nenhuma na oficina? — perguntou o velho Suleiman num  tom desafiador.
—  E porque não? Só porque ainda não me apareceu nenhuma.
Nesse  momento, a mulher de Aboubacar chegou a correr.
—  Aboubacar, desculpa, podes vir depressa para casa? Precisava de falar contigo.
—  Aconteceu alguma coisa, Aida?
—  Vem depressa. É a tua irmã Miriam.
♦♦♦
A Equipa Coordenadora do Clube  das Histórias
 
 
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