O  professor Miranda
 A aldeia das Flores, apesar de não  ser grande e de a maior parte das casas serem velhas, feitas em grandes pedras  sobrepostas e enegrecidas pelo tempo, era muito conhecida.
Ninguém  sabia explicar a razão  da aldeia se chamar das Flores.
Talvez  fosse por ter muitas árvores,  umas velhas e já  frondosas, outras novas e ainda pequenas, mas todas floridas na primavera, com  flores de várias  cores e vários  tamanhos. Ou, quem sabe, por a maior parte das casas terem vaso   s, às  vezes, panelas de ferro já  velhas, ao pé  das portas e das janelas. Ninguém  sabia explicar. Mas uma coisa era certa: desde sempre, do tempo das pessoas mais  velhinhas, aquela terra de sol, mas também  de muita neve, se chamou a aldeia das Flores.
A  escola primária  da aldeia ficava na Bouça  das Giestas. A toda a volta havia canteiros para as flores. A rapaziada  não  se cansava de plantar bolbos, semear, mondar, regar. Tinham gosto em fazer  aquele trabalho, não  fossem habi   tantes da terra das Flores! Quem ensinava na escola era a  Da Maria, uma senhora um pouco gorda, que de ano para ano foi ficando  mais idosa, lentamente, quase sem ninguém  notar. Foram muitos os anos, mais de trinta, em que a Da Maria  ensinou naquela escola. Uma escola velhinha, onde todas as carteiras eram  remendadas.
Mas  um dia, a senhora já  de cabelos brancos como neve, anunciou com voz fraca:
—  No próximo  ano, já  não  serei a professora desta escola... Estou cansada, estou velha... O Estado deu-me  a reforma...
E  assim foi. Com uma lágrima,  com muitas lágrimas,  a Da Maria despediu-se daquela casa velha, com pouca luz, onde  ensinara meninos durante mais de trinta anos.
Alguns  desses meninos cresceram e já  estão  casados e com filhos. A Da Maria costumava dizer, quando os seus  alunos lhe iam mostrar um bebé  agarrado à  chupeta:
—  Ai, estou velha!...
—  Não  diga isso, Da Maria!
Mas  ela bem sabia que lhe diziam aquelas palavras para serem amáveis.  Sentia-se envelhecer. Foi a Da Maria para sua casa. Toda a gente  dizia que era difícil  haver uma professora tão  amiga dos alunos e perguntavam:
—  Como será  a nova professora? Como será  ela?... 
Mas  ninguém  sabia explicar.
♥♥♥♥
Foi  num domingo à  tarde. Era o primeiro dia de setembro.
As  pessoas reuniam-se no Largo da aldeia, sentadas nas pedras que por lá  havia espalhadas. As mulheres remendavam roupas, os homens fumavam e falavam do  tempo e das colheitas. As crianças  jogavam à  macaca, ao rou-rou:
Rou-rou
galinha  choca
já'cordou
quantos  ovos ela pôs
como  o diabo levou!
um...  dois... três...
E  contavam até  vinte. Enquanto um dizia "rou-rou", os outros meninos escondiam-se.  ...dezanove... vinte!... Rou-rou, já  VOUUUUUU! Só  o senhor Jerónimo,  o marido da Da Maria, fumava cachimbo e lia o jornal, muito atento.  Quando era notícia  importante lia-a em voz alta, vagarosamente, pa   ra que todos pudessem  perceber.
Naquela  tarde de setembro, o senhor Jerónimo  disse:
—  Ouçam,  ouçam!  Escutem o que vem aqui, no jornal:
A  VILA TEM MAIS UMA FÁBRICA.  ABRE BREVEMENTE
—  A Vila?
—  Sim, respondeu o senhor Jerónimo, ora escutem! —  E leu: "A Vila tem mais uma fábrica.
Pouco  tempo falta para a Vila acordar com mais uma chaminé  a  deitar fumo.  O senhor Presidente da Câmara  da Vila disse ao nosso jornal:
—  "Queremos que a Vila seja cada vez mais uma terra de progresso, uma terra  civilizada, para o bem de todos nós."
O  senhor Presidente pensa que a fábrica  abre muito em breve. Afirmou:
—  "Só  faltam os esgotos. Mas amanhã  mesmo começar-se-á  a  abertura duma rota que levará  esses esgotas para o rio das Flores, junto à  aldeia das Flores".
—Mas  isso é  formidável!  A Vila fica bem pertinho da nossa aldeia!
—  Que engraçado!  O jornal fala do nosso rio...
E  outros comentários  as pessoas fizeram, uns, na esperança  de arranjar trabalho, outros, por gostarem de ver o nome da Vila, da aldeia das  Flores e do rio, naquele jornal de muitas notícias.  Estavam bastante animados quando, no Largo da aldeia, apareceu um carro de  aluguer. Dentro do carro, além  do senhor Zé—  o  motorista —  vinha  um senhor que ninguém  conheceu. Tinha barbas compridas e usava óculos.
Evidentemente  que a conversa acabou, as pessoas ficaram caladas, tentando reconhecer aquele  sujeito que tinha saído  do carro e ajudava o senhor Zé  a tirar as malas. Viram-no pagar. Certamente deu uma gorjeta, porque o senhor  Zé  começou  a rir, agradeceu muito, meteu-se no carro, acelerou e em breves instantes  desapareceu. Com as malas na mão,  e eram muitas, o senhor passou as mãos  pelas barbas e dirigiu-se ao grupo ali reunido:
—  Boa-tarde. É  aqui a aldeia das Flores, não  é  verdade?
—  É sim. —  Adiantou-se o senhor Jerónimo.
—  Bem, é  que eu sou o novo professor da escola desta terra... 
Todos,  mas todos ao mesmo tempo, deram um salto.
—  Sou sim. Chamo-me Miranda, professor Miranda. 
Depois  foi uma grande confusão  para arranjar um quarto para o novo professor...
—  Sabe, senhor professor, aqui não  há  quartos. O melhor é  ir alugar um na Vila. Consta que lá  há.  E dos bons!...
—  Obrigado. Mas, se fosse  possível,  eu gostaria de ficar nesta aldeia...
—  E quem terá  um quarto?
—  Eu não!  Ainda precisava de mais dois...
—  Tenho uma ideia, disse o senhor Jerónimo,  vamos falar com a senhora Juliana e o Ti Carvalheira. Talvez aluguem aquela  casinha pintada de azul que tem um quarto e uma sala  pequena.
—  E até  tem luz elétrica!  lembrou uma velhinha.
A  senhora Juliana e o Ti Carvalheira aceitaram a proposta.
—  Porque não?!  Se o senhor professor quer ficar ao pé  de nós,  cá  o receberemos com muito gosto!
Os  rapazes pararam as brincadeiras e ajudaram a levar as  malas.
Mais  tarde veio uma camioneta de carga com muitos caixotes e embrulhos para o  professor Miranda. Alguns eram pesados e foram os homens que pegaram neles  às  costas. "Que irá  aqui dentro, que pesa mais que ferro?!...", perguntaram os homens para os seus  botões.  Os meninos e as meninas correram a avisar os companheiros que não  estavam no Largo. Alguns andavam com as cabras e as ovelhas no  pasto.
—  Ei, ei! Temos um professor novo!
—  Um professor?!... Uma professora!
—  Não,  um professor, até  tem barbas compridas. UM PRO-FE-SSOR!
—É  novo?
—  Claro que é.  E tem uns óculos  grandes. Vocês  hão  de ver!...
♥♥♥♥
No  primeiro dia de aulas, muito antes da hora, lá  estavam os alunos, curiosos por ouvir o novo professor, que também  apareceu bem cedo. Contou uma história  com tantas aventuras como nunca tinham ouvido! Foi uma maravilha! A  Da Maria era uma boa senhora, ensinava aquelas coisas da escola, mas  o professor Miranda sabia contar histórias!  A rapaziada ficou contente e, daí  em diante, todos os dias vinham em grandes correrias, a ver quem chegava  primeiro à  escola.
As  pessoas da aldeia das Flores comentavam:
—  Quem diria que era tão  amigo das crianças?!...
—  E dizem que sabe contar cada história  mais bonita!!!...
—  E fazem passeios, recolhem tudo que podem. Até  pedras levam para a escola!...
—  Pedras?!... Para quê?
—  O meu Chico diz que é  para fazerem experiências,  jogos, eu sei lá!
—  No nosso tempo não  era assim...
—  Os tempos são  outros... Você  já  reparou na sala da escola, já  espreitou lá     para dentro?
—  Eu não!
—  Então  vá  lá,  e veja como aquela sala está  mudada! Têm  desenhos e pinturas a cobrir as paredes, flores por todo o lado eu sei  lá  quantas coisas mais!...
—  Olhe que um dia hei de passar por lá!
—Ó  comadre, você  já  reparou?
—  O quê?
—  Olhe, uma noite fui com o meu marido, o Joaquim, levar uma saca de milho ao  moinho...
—  Sim.
—  Era quase meia-noite quando saímos  de casa, toda a gente dormia...
—  Pois. Temos de nos deitar cedo, cansados como andamos. Noutras terras  há  cinemas e televisão  para as pessoas se divertirem. Mas nós  aqui, nesta aldeia, nã   o  temos nada...
—  Escute comadre! Só  havia uma única  luz acesa. E sabe onde?... Em casa do senhor professor  Miranda!...
—  E então?!
—  Então?!...  Quando viemos do moinho, ainda a luz estava acesa!
—  Lá  se esqueceu de apagar a luz...
—  Qual quê!  Ao outro dia, quando o sino grande da torre da igreja bateu duas horas da  manhã,  eu disse: "Joaquim, vamos ver se a luz do quarto do senhor professor  está  acesa?"
Fomos  espreitar e lá  estava o quarto todo iluminado! E a noite seguinte a mesma coisa. E na outra. E  na outra.
—  Porque será?  Porque será?'
Os  meninos que andavam por perto ficaram entusiasmados com aquilo que  ouviram.
—  Porque será  que o professor fica com a luz acesa?
—  Sei lá!  Se calhar esquece-se de a apagar...
—  Não pode ser! Tu nunca reparaste que ele, antes de sair da escola, vai sempre  ver se fica tudo arrumado?
—  Lá isso é.  Então  porque será?!...
—  E se um de nós  lhe perguntasse?
—  Boa ideia!
♥♥♥♥
Uma  tarde, depois de tudo estar arrumado, o Tónio,  antes que o professor desse as aulas por terminadas,  perguntou;
—  Senhor professor, há  um mistério  que ainda ninguém  conseguiu descobrir!
Tinha  o Tónio  acabado de falar, quando se fez um grande silêncio.  Podia-se ouvir uma mosca a voar.
—  Mistério?!  -perguntou o professor.
—  Sim —  respondeu o Tónio  —  Todas as pessoas da aldeia cismam por que razão  o senhor professor fica com a luz acesa até  quase  ser dia...
O  professor passou a mão  pelo cabelo branco e sorriu:
—  Ai sim!
—  Pois é...
—  Acho que podes descobrir esse mistério  se quiseres visitar o meu quarto. Quando te apetecer aparece por lá!
Já  os meninos regressavam a suas casas e o Tónio  a matutar: "Que haverá  no quarto do professor?!..." E diziam-lhe os colegas:
—  Então  Tónio,  quando é  que lá  vais?
—  Se fosse eu, ia lá  hoje mesmo!
—  Havia de abrir bem os olhos e descobrir esse mistério!
—  Se tu descobrires avisa a gente! 
A  solução  estava no quarto. E o que estaria no quarto?
Nesse  dia, quando a noite veio, por sinal uma linda noite, com uma grande lua, o  Tónio  comeu o caldo à  pressa, poisou a malga e disse:
—  Mãe,  eu vou falar com o senhor professor. 
A  mãe  ficou admirada.
—Ó  filho, é  noite, amanhã  tens tempo... 
O  Tónio  mentiu:
—  Mas o senhor professor disse para eu lá  ir hoje mesmo!
—  Não  te esqueças  de limpar as chancas antes de entrares —  recomendou a mãe.
Numa  grande corrida, as chancas que trazia calçadas  a fazerem barulho nas pedras, o Tónio  atravessou a rua estreita e daí  a momentos parou à  porta do professor. A luz estava acesa. Puxou o lenço  do bolso e limpou o nariz. Bateu à  porta.
Ouviu  passos. A porta abriu-se. O professor Miranda apareceu.
—  Olá,  és  tu! Entra, entra...
Quando  chegaram ao quarto o Tónio  arregalou os olhos. Tanta coisa bonita! Nas paredes, pinturas de paisagens,  meninos e cavalos. O que ele mais admirou, foi um quadro de um barco de velas  brancas a navegar no azul do mar. O Tónio  nunca tinha visto o mar. Encostado às  paredes, estantes repletas de livros. Livros de muitas formas e feitios.  Havia‑os também  espalhados pelo chão.  Numa mesa que servia de secretária,  uma máquina  de escrever e muitas folhas dispersas.
Nunca  tinha visto tanto livro! E quadros bonitos!
O  professor sorria.
—  Então,  rapaz?!...
Mas  o Tónio  não  disse nada. O professor perguntou:
—  Já  descobriste?
—  O quê,  senhor professor!?
—  O tal "mistério"...  
—  Ah! Eu... eu...
—  Não?!  Então  vou tentar ajudar-te! Eu gosto muito de ler e escrever. Ora, como sóà  noite é  que tenho tempo...
—  Põe-se  a ler...
—  Claro —  continuou o professor Miranda —  de noite, quando não  há  praticamente barulho, fico aqui entregue aos meus livros, lendo ou  escrevendo...  
    
  
—  E o senhor professor escreve todas as noites?
—  Sim, quase todas.
—  E porquê?...  Tem assim tanta coisa para contar todos os dias?!
—  Tenho!
—  Escreve cartas?
—  Poucas. Não  é  isso que escrevo.
—  Então?!...  —  Tónio  estava intrigado.
—  Escrevo!...
—  Redações?
Mas  o professor disse que escrevia histórias.
—  Histórias?!  Então  aquelas...
—  Estás  a pensar bem. Aquelas histórias  que vos conto na escola, sou eu quem as invento e escrevo.
—  Ah! É  por isso que fica toda a noite com a luz acesa!...
—  Ora vês!  Já  descobriste o "mistério"  da luz acesa no meu quarto!
O  Tónio  riu-se. Depois o professor Miranda dirigiu-se a uma das  estantes.
—  Olha, disse o professor, vês  aqui estes livros? 
—  Vejo!
—  Os que estão  neste cantinho, fui eu que os escrevi.
—  A sério?!  O senhor... o senhor é  um escritor? —  perguntou o Tónio  embasbacado.
—  Porque estás  tão  espantado? Como imaginavas tu um escritor?
—  Sei lá.  Eu pensava que um escritor era assim um homem muito alto, muito sério,  sempre fechado num quarto, a escrever, a escrever.
Tónio  sentia-se viajar sobre as nuvens. Nunca poderia imaginar que o professor Miranda  escrevesse livros. Porque ele nem era muito alto e falava com todas as pessoas  da aldeia. Também  não  estava fechado no quarto. Era afinal uma    pessoa igual às  outras. E ele a pensar que os escritores viviam nas grandes cidades, e afinal,  à  beira dele, estava um escritor!
Lembrou-se  de fazer uma pergunta:
—  Senhor professor, um livro custa muito a fazer?
—  Claro, tudo demora o seu tempo. Há  muito trabalho a fazer. Olha, escrever uma história  é  quase como pegar num arado. Neste caso é  a caneta. Escrever é  lavrar um campo que não  está  cultivado.  Lavra-se, grada-se, semeia-se, sacha-se, arrenda-se, rega-se. E lentamente a  história  vai ficando com forma, vai crescendo, amadurecendo. Num campo, depois do milho  estar maduro, é  que se corta e se recolhe.
Assim  é  uma história:  ao fim de muito tempo e de muita canseira é  que está  terminada. Depois, vai para a tipografia, para as máquinas  de impressão.  E, finalmente, aparece o livro.
—  Nunca tinha pensado nisso, senhor professor! 
Então o professor perguntou:
—  Queres levar um livro para leres?
—  Quero.
O  professar entregou-lhe um livrinho.
—  Lê-o  Tónio,  fui eu que o escrevi.
O  Tónio  veio com o livro apertado ao peito, radiante. E só  perto de casa é  que se lembrou que não  tinha agradecido ao professor. Quando entrou na cozinha, a mãe,  que estava a fiar lã,  ao vê-lo,  ficou aflita:
—  Que tens filho?
—  Não  tenho nada, minha mãe!
Mas  a mãe  conhecia muito bem o filho. Sentia que tinha havido qualquer coisa que o  impressionara.
—  Que foi? Que te aconteceu? 
Então ele disse:
—  Ai minha mãe,  se visse tantos livros como eu vi no quarto do professor!... E sabe? Foi ele  quem escreveu este que trago aqui! Emprestou-mo!
Como  a mãe  não  sabia ler, o Tónio  abriu o livrinho na primeira página  e começou  a    ler em voz alta:
—  Era uma vez... —  O menino deu um salto no banco em que estava sentado: —  Mas nós  já  conhecemos esta história.  Não  se lembra de eu lha ter contado?
—  Sim, sim —  disse a mãe,  que nunca parava de fiar —  mas  lê-a,  que é  muito bonita.
O  Tónio  leu naquela noite as histórias  todas. 
A  mãe  a ouvir, ambos maravilhados.
Mas  na casa do Tónio  não  havia luz elétrica.  
Apenas  um candeeiro a petróleo  alumiava o pequeno quarto. 
A  candeia ficou sem petróleo.  
A  luz começou  a tremelicar. 
A  mãe  disse:
—  Filho, vamos dormir. A luz está  a acabar...
António  Mota
A  Aldeia das Flores
Porto, Edições Asa, 1999
A Equipa Coordenadora do Clube  das Histórias
 
 
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