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quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A caminho do Natal



O inverno tinha chegado e com ele a neve que caía em grandes flocos. A água deixara de correr nos ribeiros gelados, e as aves, empoleiradas nas árvores, já não cantavam, de cabeça recolhida debaixo das asas. Um vento glaciar obrigava as pessoas a manter-se em casa ao canto da lareira.
Naquela terra corria o rumor de que o senhor de um reino longínquo andava à procura de alojamento para o seu filho.
 
Simão, um mercador rico da cidade, que vivia sozinho com a mulher numa grande mansão, tinha ouvido falar disso. Esse tal rei vem de certeza bater-me à porta, pensava ele, pois a minha casa é a mais linda da região!
 
E ficou no limiar da porta, à espreita, esperando o coche real.
Mas a rua permanecia escura e deserta.
 
A mulher de Simão entrou na sala. Caminhava com dificuldade, de costas curvadas, apoiada numa bengala. Tinha imensas dores de pernas. Trazia um castiçal que pousou em cima da mesa.
— Uma vela só é muito pouco! — disse o marido em tom de crítica — Acende todas as lanternas da casa e põe uma em cada janela.
— Tanta luz para quê? — admirou-se a mulher.
— Vai vir um rei a nossa casa! — explicou Simão. — A casa tem de se ver ao longe, de noite. Se ficar cá, receberemos uma bela recompensa. É por isso que deves iluminar as janelas. Despacha-te! E prepara uma boa refeição, digna de um rei. Anda, despacha-te!
A muito custo a mulher deu volta à casa a iluminar todas as janelas. Tinha chegado à última divisão quando alguém bateu à porta. Foi abrir muito devagar.
O recém-chegado trazia um casaco já muito puído e, nos pés, uns sapatos rotos.
 
— Boa noite, minha senhora — disse ele — Será que poderia alojar o meu filho só por esta noite? Está tanto frio cá fora!
 
O homem tinha ar de mendigo, mas o seu rosto resplandecia. E os olhos emitiam um brilho estranho que parecia vir do mais profundo da alma.
Mas Simão não deu por nada. Só via os farrapos do pobre.
 
— Vai-te embora! — disse ele. — Esta casa não é para mendigos!
— A minha recompensa será grande — disse o forasteiro. — E vale mais do que todo o ouro e todas as riquezas deste mundo.
Simão desatou a rir, trocista:
— E onde escondes tu os tesouros? Debaixo desses farrapos ou no teu saco roto?
Entretanto a mulher de Simão tirara o xaile e entregara-o ao mendigo. Também lhe deu uma fatia de pão e uma chávena de leite.
— É tudo o que lhe posso dar! — murmurou.
— Muito obrigado! — disse o forasteiro.
 
E pegando na bengala em que ela se apoiava, arrumou-a junto do armário.
— Daqui em diante não vai precisar mais dela! — acrescentou, antes de desaparecer na noite. Envolvia-o um halo de luz.
A mulher sentiu-se de imediato livre dos seus sofrimentos. As pernas já não lhe doíam. Endireitou-se e deu alguns passos.
— Estás a andar como dantes! — exclamou Simão maravilhado. — E a bengala?
— Já não preciso dela! — disse a mulher com voz trémula. — Foi um milagre. O forasteiro curou-me…
— Um mendigo que faz milagres? Deixa-te de tolices! — resmungou Simão.
— Aquele desconhecido irradiava uma luz especial… — prosseguiu ela — O Rei é ele, tenho a certeza, um Rei vindo de longe…
 
Simão ficou pensativo. O desconhecido tinha falado numa recompensa que valia mais do que todo o ouro e todas as riquezas deste mundo. E acabava de realizar um milagre. Então Simão compreendeu…
 
— O que eu fui fazer! Que miserável sou! — exclamou ele — Depressa, tenho de o encontrar!
Enfiou as botas e o casaco e saiu a correr.
 
Tinha parado de nevar. O vento glaciar deixara o céu a descoberto, agora semeado de estrelas. No silêncio da noite, Simão ouviu uma voz que o chamava ao longe. Mas não via ninguém. Descobriu pegadas na estrada, e pôs-se a segui-las, descendo em direção à igreja. Ali, encontrou uma mulher a chorar.
 
— Que te aconteceu? — perguntou ele.
— Tenho muito frio! — gemeu a idosa.
Então, cheio de remorsos, Simão deu-lhe o casaco.
Depois continuou a caminhar, seguindo as pegadas na neve. Um pouco mais à frente, viu um rapaz a soluçar. Também ele tinha frio, descalço na terra gelada, com os pés gretados. Simão descalçou as botas forradas e deixou-as ao miúdo.
— Simão! — chamou de novo a voz. Parecia mais próxima do que da primeira vez, mas Simão continuou a não ver ninguém.
 
Descalço, pôs-se a andar, guiando-se sempre pelas pegadas da neve.
Mais longe, passou junto de um idoso que tremia, sentado junto de uma árvore. Vestia apenas uma camisa. Simão despiu o casaco e pô-lo sobre os ombros do mendigo. Também ele sentia agora o vento a morder-lhe a pele nua. Então, pela terceira vez, alguém o chamou:
 
— Simão — disse o Rei, — passaste todas as provas que semeei no teu caminho. Continua a seguir o trilho e chegarás diante de uma pobre cabana. Aí encontrarás o meu filho deitado nas palhas de uma manjedoura. Está à tua espera.
Simão obedeceu.
E as pegadas na neve conduziram-no a um estábulo.
 
Tal como o Rei dissera, um Menino estava deitado nas palhas de uma manjedoura.
Uma grande luz iluminava aquele lugar e um calor suave aqueceu Simão até ao fundo da alma.
Sentiu-se invadido por uma enorme felicidade e uma grande paz encheu-lhe o coração.
Então, ajoelhou e pôs-se a rezar.
E o Menino sorriu-lhe.
 
 
Anneliese Lussert ; Loek Koopmans
Sur le chemin de Noël
Namur, NordSud, 1995
(Tradução e adaptação)
 
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
 
 
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Uma cidade, dois irmãos

 
Em tempos que já lá vão, Salomão reinava na cidade de Jerusalém. Durante o seu reinado, mandou edificar um templo magnífico para o povo. Era um edifício único, um lugar santo. Todos os dias, o monarca recebia no palácio a visita dos seus súbditos, a quem dava conselhos, quando lhos pediam, ou julgava aqueles que tinham infringido as suas leis.
Um dia, apresentaram-se diante do rei dois irmãos. O pai falecera há pouco e ambos disputavam a herança das suas terras. Pediram a Salomão que os aconselhasse.
— Segundo a lei, deveria ser eu a herdá-las! — disse um dos irmãos.
— Mas é de justiça que eu receba a minha parte! — exclamou o outro.
O rei, que era sábio, escutou-os primeiro. Mas, ao ver que cada vez gritavam e se encolerizavam mais, levantou a mão, ordenando que se calassem, e disse:
— Vou contar-vos uma história que ocorreu há muito tempo, muito antes de aqui haver uma cidade, muito antes de esta terra ter um templo.
Eis a história que contou o Rei Salomão:
 
Há muito, muito tempo, havia um vale sulcado por um rio, que abria caminho por entre as montanhas, a nascente, e desaguava no mar, a poente. O vale era rodeado por encostas cobertas de oliveiras e amendoeiras. No lugar onde o rio acompanhava a curva de uma montanha rochosa, havia duas povoações, cada uma delas com um punhado de casas de pedra, algumas lojas, e currais para os animais.
Nelas viviam dois irmãos que cultivavam campos no solo fértil do vale, a meio caminho entre as duas povoações. O irmão mais velho vivia na povoação acima dos campos que partilhavam. O mais novo vivia na povoação abaixo dos campos que cultivavam. Duas estradas ligavam os dois povoados: uma ficava no cume da montanha que os separava, a outra atravessava o vale e passava junto aos campos.
Todos os outonos, depois das primeiras chuvas, os dois irmãos pegavam nos seus burros e juntos aravam a terra e faziam a sementeira. E, todos os invernos, as sementes germinavam e cresciam até à primavera. Depois, as cabecinhas dos caules engrossavam e amadureciam e, no verão, já apresentavam uma cor dourada. Os dois irmãos ceifavam o trigo, debulhavam-no, e guardavam o grão em sacos.
Uma vez terminadas estas tarefas, os irmãos contavam os sacos e repartiam-nos de forma igual, ficando cada um com metade. Tocava a cada um a mesma quantidade de palha para os animais e a mesma quantidade de trigo para moer, converter em farinha, e fazer pão. Quando chegava o outono, começavam a lavrar a terra de novo. E assim se iam passando os anos.
O irmão mais velho casou e não tardou a ter a casa cheia de filhos para alimentar. Felizmente que a parte da colheita que lhe tocava durava sempre até ao fim do inverno, o que o deixava contente. O irmão mais novo nunca casou. Alguns diziam que não tinha encontrado a mulher que lhe convinha, outros diziam que gostava de levar uma vida tranquila. De qualquer forma, também ele se sentia contente.
 
Certo verão, a colheita foi excelente, melhor do que alguma vez fora. Os dois irmãos empilharam os sacos pesados e viram que havia vinte para cada um. Quando o irmão mais velho acabou de os amontoar, pensou no mais novo. "Tenho muita sorte em ter uma família", disse para consigo, "porque, quando for velho, cuidarão de mim. Mas o meu irmão não tem ninguém. Como tem de poupar para a velhice, vai precisar deste trigo mais do que eu."
Então, o irmão mais velho decidiu dar um presente ao irmão mais novo. Quando a noite se pôs, carregou três sacos de grão no burro e subiu a montanha por detrás da sua casa. Depois, desceu a encosta e foi até ao povoado onde vivia o irmão. Era uma noite sem estrelas nem luar. Contudo, ele conhecia tão bem o caminho que poderia fazê-lo de olhos vendados. Sem fazer barulho, dirigiu-se, pé ante pé, até ao alpendre onde o irmão guardava o grão e deixou três sacos junto dos que já lá estavam. Depois, regressou a casa, sorrindo, a pensar na cara do irmão quando visse os sacos na manhã seguinte.
No dia seguinte, depois de tomar o pequeno-almoço, a mulher perguntou-lhe como tinha corrido a colheita.
— Este ano só tivemos dezassete sacos — disse o marido. — Se não os gastarmos mal gastos, serão suficientes.
A mulher fitou-o, surpreendida.
— Só dezassete sacos? Parecia uma colheita tão boa...
O marido encolheu os ombros e sorriu. Enquanto a família acabava de comer, a mulher foi até ao lugar onde guardavam os sacos de trigo. Regressou a casa passado pouco tempo.
— Ó homem, estás tão cansado que nem sequer sabes contar os sacos.
— O que queres dizer com isso? — perguntou o marido.
— Fui ao armazém e contei vinte sacos, não dezassete.
— Não pode ser! — exclamou ele.
Foi ver com os seus próprios olhos e deparou com vinte sacos.
— Como é isto possível? Devo ter sonhado!
Naquela noite, depois de o sol se pôr, voltou a carregar três sacos no burro e levou-os até casa do irmão. Desta vez, para que o burro não se cansasse, tomou o caminho do vale. Na manhã seguinte, disse à mulher que só tinham dezassete sacos porque tinha oferecido três. Pôs um dedo nos lábios e disse, sussurrando:
— É um segredo.
A mulher olhou para ele, desconfiada:
— Tens a certeza do número de sacos? — perguntou.
— Claro que tenho. Vem comigo e já te mostro.
Mas, quando foram contá-los, eram novamente vinte. A mulher não achou graça ao sucedido.
— Porque troças de mim? Devias dizer-me a verdade.
— Será um milagre? — interrogou-se o homem. — Ou será que estou a ficar velho e já não me lembro do que faço?
Na terceira noite, depois do entardecer, saiu de novo com três sacos, decidido a dar o presente ao irmão, custasse o que custasse.
 
Três dias antes, o irmão mais novo, ao acabar de empilhar o último saco, pensara no irmão mais velho e nas bocas que este tinha de alimentar. "Ele precisa mais do trigo do que eu", pensou, "e já sei o que vou fazer. Sem ele saber, vou deixar três sacos dos meus junto dos dele, e terá uma bela surpresa pela manhã".
Quando já era noite, carregou três sacos no burro e, sob um céu sem estrelas, tomou o caminho do vale, rumo à casa do irmão mais velho. Uma vez lá, deixou os sacos no celeiro. No dia seguinte, o irmão mais novo reparou, com estranheza, que havia demasiados sacos de trigo no seu alpendre. Contou-os e estavam vinte. Mas, se tinha oferecido três, só devia haver dezassete. Como era possível que houvesse vinte? Teria sonhado?
Passou o dia a dar voltas à cabeça. Quando anoiteceu, voltou a carregar três sacos no burro, decidido que estava a ajudar o irmão. Desta vez, tomou o caminho mais curto, o que subia a montanha, para deixar os sacos ao irmão. Regressou a casa, sem que ninguém o visse. Na manhã seguinte, voltou a contar os sacos e viu que tinha vinte. "Isto deve ser imaginação minha", pensou. "Esta noite, levo-os sem falta". Naquela noite, pela terceira, vez, voltou a percorrer o caminho da montanha para ir ao povoado do irmão. Desta vez, havia lua cheia. Quando atingiu o cume da montanha, viu o irmão a dirigir-se para ele e pareceu-lhe estar diante do seu próprio reflexo.
Sem dizer palavra, ambos compreenderam porque se tinham encontrado ali. Os seus corações encheram-se de alegria, ao darem-se conta do amor fraternal que os unia. Foi naquela montanha, entre as duas povoações, que Jerusalém foi erguida. E, no mesmo sítio onde se encontraram os irmãos, construiu-se o templo sagrado.
 
Com estas palavras, Salomão deu por finda a história.
Os dois homens ficaram em silêncio e todos na sala de audiências ficaram suspensos da sua reacção. Ao fim de algum tempo, o irmão mais velho ergueu os olhos.
— Irmão — disse — o que outrora foi do nosso pai é agora nosso. Nem teu nem meu, mas nosso. Devemos partilhá-lo.
Abraçaram-se os dois e abandonaram a sala, de braço dado. Desde esse dia, tanto eles como as suas famílias viveram sempre juntos e felizes. E não havia história que os filhos ouvissem com mais atenção e interesse do que a dos dois irmãos, a história que Salomão, o rei sábio, tinha contado aos seus pais.
 
 
Chris Smith
Una ciudad, dos hermanos
Barcelona, Intermón Oxfam, 2007
(Tradução e adaptação)
 

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Rosa Sparks


 
O dia de Rosa Parks estava a correr bem.

A mãe estava a recuperar da gripe e viera tomar o pequeno-almoço à mesa. O marido, Raymond Parks, um dos melhores barbeiros do condado, tinha sido convidado a fazer algumas horas extra na base militar local. E o primeiro dia de dezembro era sempre especial, porque o Natal estava próximo.

Em breve, na secção dos arranjos de costura, todas iriam estar muito ocupadas. As senhoras de Montgomery, jovens ou idosas, precisariam de pequenos ajustes nos seus vestidos de cerimónia ou nos seus fatos e blusas domingueiros, quer fosse uma flor a bordar ou um debrum de veludo a acrescentar.

E Rosa Parks era a melhor costureira de todas. A agulha e o fio voavam nas suas mãos, qual fada a tecer fios de oiro. As outras costureiras diziam que ela tinha dotes mágicos. Rosa ria:

— Não são dotes mágicos, apenas concentração.

♣♣♣

Havia dias em que Rosa nem sequer almoçava para acabar tudo a tempo. Mas, nesta quinta-feira, o trabalho estava adiantado e a supervisora disse-lhe:

— Por que não vais mais cedo para casa, Rosa? Sei que a tua mãe está doente e que podes precisar de estar com ela.

A supervisora sabia que ela só saía quando o trabalho estivesse feito mas, como estavam apenas no início de dezembro, tinham tempo. Rosa ficou satisfeita. Chegaria mais cedo a casa e, como o marido trabalhava até mais tarde, talvez o surpreendesse com um empadão. Despediu-se das colegas e encaminhou-se para a paragem de autocarro. Procurou uma moeda no bolso para não ter de pedir troco. Entrou no autocarro, pagou a viagem e saiu de novo, dirigindo-se à porta de trás: os negros não podiam entrar pela porta da frente. Rosa reparou que os lugares reservados a negros estavam todos preenchidos, mas que havia lugares vagos na secção neutra do autocarro, onde negros e brancos se podiam sentar.

O lado esquerdo tinha dois lugares vagos e o direito estava já ocupado por um homem. Rosa sentou-se junto dele. Não se lembrava do seu nome, mas conhecia-o e ao filho dele, Jimmy. Este era visita frequente da Associação de Jovens Afro-Americanos. Trocaram algumas palavras e o autocarro começou a andar.

Rosa procurou não incomodar o pai de Jimmy com as suas sacas. O autocarro ia já cheio e os dois lugares da esquerda estavam agora ocupados por negros. Pensava no jantar desse dia quando ouviu o motorista gritar:

— Já disse que preciso desses lugares!

Surpreendida, Rosa Parks levantou os olhos. Os dois negros já se tinham levantado e dirigido para a parte traseira do autocarro. O pai de Jimmy murmurou:

— Não quero ter problemas. Vou lá para trás.

Rosa levantou-se para o deixar passar mas sentou-se de novo.

— Não dificulte as coisas! — gritou o motorista.

— Por que se mete sempre connosco? — perguntou ela, num tom de voz calmo e determinado.

— Vou chamar a polícia! — ameaçou o homem.

— Faça o que tiver a fazer — continuou Rosa.

Não se sentia amedrontada. Não tencionava abdicar do que sabia estar certo.

Alguns brancos diziam em voz alta que ela devia ser presa e posta fora do autocarro. Alguns negros, temendo algo violento, saíram do autocarro. Outros ficaram, murmurando:

— Aquela é a secção neutra do autocarro. Tem todo o direito de ali estar.

♣♣♣

E ali continuou Rosa Parks.

Enquanto esperava pela polícia, Rosa pensava em todos os homens, mulheres e jovens corajosos que lutavam pelos direitos cívicos. Recordava uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, de 1954, que decretara que “separado” queria dizer “inerentemente desigual”. E sentia-se cansada. Não cansada do trabalho, mas cansada de ter de pôr sempre os brancos em primeiro lugar.

Cansada de descer dos passeios para deixar passar os brancos, cansada de comer em balcões separados, cansada de estudar em escolas separadas. Estava cansada de entradas para “gente de cor”, varandas para “gente de cor”, fontanários para “gente de cor”, e táxis para “gente de cor”. Estava cansada de chegar sempre primeiro e de ser sempre servida em último lugar. Cansada de “estar separada” e de “não ser igual”.

Pensou na mãe e na avó e sabia que elas queriam que ela fosse forte. Não tinha procurado aquele momento, mas estava preparada para o enfrentar.

Quando o polícia se debruçou sobre ela e perguntou:

— Então, tiazinha, vai sair ou não?

Rosa sentiu-se encorajada pela força das pessoas de cor ao longo de todos aqueles anos e disse:

— Não.

♣♣♣

Jo Ann Robinson estava numa loja quando soube que Rosa Parks tinha sido presa. Estava a comprar macarrão e queijo para acompanhar o peixe que ia servir ao jantar. Uma colega do Conselho Político das Mulheres aproximou-se dela e relatou-lhe o ocorrido. A reação foi:

— Não pode ser! Diz a toda a gente que temos reunião hoje à noite, às dez, no meu escritório.

A Sra. Robinson era professora no Alabama State, a universidade frequentada exclusivamente por negros, e tinha sido recentemente eleita Presidente do Conselho Político das Mulheres. Apressou-se a ir para casa fazer o jantar, arrumar a cozinha e deitar os filhos. Depois, despediu-se do marido e foi para a faculdade.

♣♣♣

As vinte e cinco mulheres ali reunidas rezaram para que a sua fosse a atitude certa. Iam usar a impressora e o papel timbrado do Estado do Alabama sem autorização. Se fossem apanhadas, podiam ser presas. Mas era sua convicção de que estavam a agir para sabotar uma lei injusta. A atitude corajosa de Rosa Parks guiá-las-ia.

Formaram grupos e distribuíram tarefas. Concentraram-se no estêncil, a parte mais difícil. Um só erro implicaria uma página inteira deitada fora. Os panfletos diziam: NINGUÉM ANDA DE AUTOCARRO HOJE. APOIEM MRS. PARKS. ANDEM A PÉ. Tinham sido feitos panfletos em quantidade suficiente para todos os negros de Montgomery. A maioria achava que a decisão do Supremo Tribunal de que a segregação não era sinónima de igualdade os ajudaria, mas estavam enganados.

Pouco depois dessa decisão judicial, Emmett Till, um rapaz de catorze anos do Mississipi, tinha sido linchado e o seu funeral acompanhado por mais de cem mil pessoas. Agora, semanas após a libertação dos seus assassinos, Rosa Parks tinha tomado uma atitude corajosa e todos estavam decididos a apoiá-la. Todos se reuniram em torno do Reverendo Martin Luther King, Jr., que tinha concordado em liderar o protesto.

— Não viajaremos de autocarro — disse este, no comício. — Andaremos a pé até que a justiça jorre como a água e a igualdade flua como um rio poderoso.

E todos andaram a pé. À chuva, ao sol, de manhã cedo, quando já era noite cerrada, no Natal, na Páscoa, no 4 de Julho, no Dia do Trabalhador, no Dia de Ação de Graças e outra vez no Natal.

De todos os Estados Unidos vieram sapatos, casacos e dinheiro, para que os cidadãos de Montgomery pudessem andar. Todos estavam orgulhosos deste movimento não-violento. A força anímica que os sustinha iria animar ainda muitos protestos nos anos a vir.

A 13 de Novembro de 1956, quase um ano depois da prisão de Rosa Parks, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decretou que a segregação era ilegal. Fosse nos autocarros ou nas escolas.

♣♣♣

Rosa Parks tinha dito “Não” para que o Supremo Tribunal pudesse lembrar ao país que a Constituição não contemplava cidadanias de segunda classe. Somos todos iguais perante a lei e todos temos direito à sua proteção.

A integridade, a dignidade e a força tranquila de Rosa Parks transformaram o seu “Não” num “Sim” à mudança.
 
Nikki Giovanni; Bryan Collier
Rosa
New York, Square Fish, 2008
(Tradução e adaptação)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Abrir asas e voar


Tal como com outras raparigas, a minha autoconfiança à medida que ia crescendo praticamente não existia. Duvidava das minhas capacidades, tinha pouca fé no meu potencial e questionava o meu valor pessoal. Se tinha boas notas, acreditava que era apenas por sorte. Embora fizesse amigos com facilidade, preocupava-me que, uma vez que as pessoas me conhecessem, as amizades não perdurassem. E se as coisas corriam bem, pensava apenas que estava no sítio certo no momento certo. Rejeitava mesmo elogios e cumprimentos.
As escolhas que fiz refletiam a imagem que tinha de mim própria. Ainda adolescente, senti-me atraída por um homem com a mesma baixa estima. Apesar do seu temperamento violento e de um relacionamento extremamente complicado durante o namoro, decidi casar com ele. Ainda me lembro do meu pai a sussurrar-me ao ouvido antes de me acompanhar ao altar “Ainda não é tarde demais, Sue. Podes mudar de ideias. ” A minha família sabia o erro terrível que eu estava a cometer. Umas semanas depois, também eu.
A violência física durou vários meses. Sobrevivi a ferimentos graves, estava coberta de pisaduras a maior parte de tempo e tive que ser hospitalizada em inúmeras ocasiões. A minha vida tornou-se uma mancha obscura de sirenes da polícia, relatórios médicos e presenças da família nos tribunais. No entanto, eu voltava sempre para aquela relação, na esperança de que as coisas pudessem melhorar.
Depois de as nossas duas meninas terem nascido, houve alturas em que tudo o que me ajudava a superar mais aquela noite era ter aqueles bracinhos rechonchudos à volta do meu pescoço, as bochechas gorduchas esmagadas contra as minhas e aquelas deliciosas vozinhas infantis a dizer “Está tudo bem, Mamã. Tudo vai ficar bem.” Mas eu sabia que não ia ficar bem. Tinha mudanças a fazer – se não por mim, pelo menos para proteger as minhas filhas.
Então algo aconteceu que me deu coragem para mudar. Consegui, no âmbito do meu trabalho, participar numa série de seminários sobre desenvolvimento profissional. Num deles, uma oradora falou sobre “tornar os sonhos realidade”. O que era muito difícil para mim – até mesmo sonhar com um futuro melhor! Mas algo naquela mensagem me tocou.
Ela pediu-nos que tivéssemos em conta duas questões importantes: “Se pudessem ser, fazer, ou possuir algo, fosse ele o que fosse, sabendo à partida que seria impossível falhar, o que escolheriam? E se pudessem construir a vossa vida ideal, o que teriam a coragem de sonhar?” Naquele momento, a minha vida começou a mudar. Comecei a sonhar.
Imaginei-me a ter coragem de mudar com as crianças para um apartamento só nosso. Começar de novo! Visualizei uma vida melhor para as minhas filhas e para mim. Sonhei em ser uma oradora motivacional para poder inspirar as pessoas do mesmo modo que a orientadora do seminário me tinha inspirado. Vi-me a escrever a minha própria história para dar coragem a outros. Assim sendo, continuei a construir a imagem visual do meu novo sucesso. Visualizei-me a usar um fato muito profissional de cor vermelha, uma pasta de couro na mão e a apanhar um avião. E nisto já extrapolava bastante, uma vez que nessa altura não tinha sequer dinheiro para o fato…
No entanto, eu sabia que era importante preencher o meu sonho com detalhes alusivos aos meus cinco sentidos. Por isso, fui a uma loja de artigos em couro e pus-me ao espelho com uma pasta na mão. Como é que aquilo ficaria, como é que eu me sentiria? Qual seria o cheiro do couro? Experimentei alguns fatos vermelhos e até encontrei a imagem de uma mulher com um, transportando uma pasta e entrando num avião. Pendurei a imagem num sítio onde a pudesse ver todos os dias. Ajudava-me a manter o sonho vivo.
E rapidamente as mudanças chegaram.
Mudei-me com as crianças para um pequeno apartamento. Com apenas 77€ por semana, comíamos muita manteiga de amendoim e deslocávamo-nos num velho carro. Mas, pela primeira vez na vida, sentíamo-nos livres e em segurança. Eu empenhava-me ao máximo na minha carreira de vendedora, sempre concentrada no meu “sonho impossível.”
Então, um dia, atendi o telefone, e a voz do outro lado pediu-me que falasse na conferência anual da companhia a realizar em breve. Aceitei e o meu discurso foi um sucesso. Isto levou-me a uma série de promoções, e acabei coordenadora de vendas a nível nacional. Atualmente, promovo a minha própria equipa de oradores motivacionais e viajo por imensos países à volta do mundo. O meu “sonho impossível” tornou-se realidade!
Acredito que todo o sucesso começa quando abres as tuas ASAS – quando acreditas no teu valor, confias no teu íntimo, cuidas de ti, tens um objetivo e delineias uma estratégia pessoal. E, nesse momento, os sonhos impossíveis tornam-se realidade.
Sue Augustine
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

À conquista do Pacífico

 
Apenas sei que me deparei com a sensação de um feliz despertar.
Edna St. Vincent Millay
 
Uma manhã, na Califórnia, raptei a minha sogra e escapei-me de Los Angeles pela autoestrada nº1 da Costa do Pacífico. Não sabia exatamente onde é que iríamos, mas sabia que ia levá-la até à praia. Tinha decidido que o que ela precisava era de mergulhar os dedos dos pés nas águas curativas do poderoso Pacífico.
A minha sogra estava disposta a colaborar no rapto. A sua disposição andava desesperadamente abatida com a perspetiva de ter que ser injetada com uma mistura tóxica de químicos, logo após aquele dia tão soalheiro. Uma vez que não sabíamos falar a língua uma da outra, tínhamos ambas conspirado para iludir a sua filha, com ajuda de Jamie, o meu sobrinho de onze anos, que fala farsi e inglês.
Escolhi um lugar solitário. A minha sogra precisava da paz e da tranquilidade da natureza, dos gritos das gaivotas, e do bater das ondas rebentando em azul e branco, não do barulho do trânsito, dos lamentos humanos e dos sons estéreis e metálicos do hospital.
Jamie consultou o mapa. Se nos mantivéssemos na autoestrada Nº1 da Costa do Pacífico, era certo que iríamos acabar por encontrar o tal lugar. E, assim que fizemos a curva depois da praia de Newport, lá estava ele! Subitamente, perante nós, o vasto oceano brilhava como uma forma metálica que esculpia a terra em forma de um crescente perfeito.
“Bah, bah,” murmurou a minha sogra, “Meu Deus, meu Deus.” A baía cintilante e deserta estendia-se mesmo a nossos pés. Dirigi-me ao estacionamento. “Crystal Cove State Park” dizia a tabuleta. Como que a abençoar o nosso dia de gazeta, uma borboleta esvoaçou para o tejadilho branco do carro e fez uma pausa para tomar fôlego, com as asas amarelas e azuis a ondularem na luz quente e intensa.
A face da minha sogra brilhava como a de uma menininha na manhã de Natal. Sorri com cumplicidade para Jamie, que soltou uma pequena gargalha. Há meses que não a víamos tão animada! Esperámos que a borboleta continuasse viagem, e depois tirámos a cadeira de rodas da mala do carro e ajudámos a minha sogra a sentar-se.
Afundando-nos em florinhas selvagens cor-de-rosa e lavanda, dirigimo-nos por um caminho íngreme e sinuoso escarpa abaixo para um sol intenso e retemperador. Uma vez chegados à praia, a cadeira de rodas começou a causar problemas, mas a minha sogra desatou a rir enquanto nós a sacudíamos por cima dos seixos cinzentos, tentando chegar à orla da água onde se viam algas secas e uma areia mais plana e húmida, recém-banhada pelas marés. Parámos junto a um monte de seixinhos, e Jamie deixou-se cair de costas em cima deles.
“Estas pedras estão tão quentinhas!” suspirou, relaxado que nem um gato. A minha sogra olhava fixamente o mar, e o meu coração sentia-se bem quente ao ver os reflexos dourados das ondas prateadas estampados no enorme sorriso da sua cara. “Bah, bah,” exclamou elapegando-me na mão. Sentámo-nos de mãos dadas durante bastante tempo, a olhar o oceano. E, embora eu tivesse sido criada em Inglaterra nas costas do gélido e belo Mar do Norte, o indomável Pacífico arrebatou-‑me totalmente o coração.
Quando a maré vazou, descobri algumas pocinhas. “Ei, Jamie!”
Tudo o que Jamie conseguiu proferir em resposta foi um grunhido.
“Alguma vez viste pocinhas de água?” perguntei.
Ele levantou-se num relâmpago. As criaturas marinhas fascinavam o meu sobrinho todo citadino. Apontei para as ilhas de algas castanho-esverdeadas.
“Ua-a-u-u!” gritou ele, saltando das pedras.
“Diz à tua avó que vamos apenas dar uma volta por aí.”
Jamie baixou-se ao lado da avó e explicou-lhe. Em resposta, ela afagou-lhe o cabelo encaracolado e negro.Caminhei pela praia, com a espuma das ondas a beijar-me os pés, até chegar junto às rochas.
“Espera,” gritou Jamie, saltitando num pé só, enquanto arrancava dos pés as enormes sapatilhas.
Voltei-me para dizer adeus à minha sogra, que me acenou também. Foi-me doloroso ver quanto esforço aquele simples movimento lhe tinha custado.
“Achas que a tua avó ia gostar de molhar os pés?” perguntei a Jamie.
“De quê?”
Estava dobrado como um gancho de cabelo sobre um amontoado de minúsculos caranguejos que fugiam da sua sombra para se esconderem debaixo de uma barreira de algas de cheiro intenso. Espreitou por cima do seu ombro bronzeado para a avó, uma pequenina senhora idosa embrulhada num xaile preto. Parecia tão débil! Com os olhos a brilhar, Jamie sorriu para mim.
Chapinhámos nas ondas, e depois subimos diretos à orla da praia. Antes ainda de Jamie ter acabado de lhe explicar, a minha sogra tinha desenrolado o xaile com impaciência e estava já a levantar os pés dos descansos da cadeira de rodas.Ajoelhei-me para lhe retirar os chinelos de tecido aveludado, e ela assentiu, radiante.
Jamie e eu amparámo-la até ela se sentir segura. Inspirou profundamente, fixou o horizonte distante, e logo mexeu um dos pés. O declive não tinha quaisquer consequências para Jamie e para mim, mas os dedos dos pés da minha sogra tateavam antes que se atrevesse a dar qualquer passo. Quase caiu por duas vezes, e eu arrependi-me da minha ideia quando vi o seu esforço em respirar. No entanto cerrou bem os dentes. Não conseguia vencer o cancro, mas podia e havia de fazer isto.
Assim que a espuma gelada inundou os seus pés, toda ela se emocionou. Jamie e eu conseguimos afastar-nos ligeiramente enquanto ela se mantinha ali, em pé, sozinha. De olhos fechados, virou a cabeça para o sol e inspirou profundamente. Quando os seus pulmões libertaram aquele ar purificado, soltou um suspiro de tanta satisfação que os meus olhos encheram-se de lágrimas.
Regressámos a LA. depois de escurecer, esgueirando-nos para o apartamento como três ratinhos atrevidos… A minha cunhada estava nervosíssima. Mas o que é que nos tinha passado pela cabeça?
A minha sogra, o Jamie e eu trocámos olhares cúmplices.
Sabíamos muito bem o que nos tinha passado pela cabeça.
 
Christine Watt
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A escola secreta de Nasreen (uma história verdadeira do Afeganistão)

A minha neta Nasreen vive comigo em Herat, uma antiga cidade do Afeganistão, onde outrora floresceram as artes, a música e a educação. Mas depois chegaram os soldados e tudo mudou. As artes, a música e a educação desapareceram. Nuvens negras pairam agora sobre a cidade.

A pobre Nasreen fica em casa todo o dia, porque as raparigas estão proibidas de frequentar a escola. Os talibãs não querem que as raparigas estudem, como eu e a mãe de Nasreen fizemos quando éramos crianças.

Uma noite, vieram eles e levaram o meu filho, sem qualquer explicação. Esperámos dias e noites pelo seu regresso. Cansada de esperar, a mãe de Nasreen pôs-se, finalmente, a caminho, à procura dele, embora fosse proibido às mulheres e raparigas andar sozinhas pela rua.

Muitas luas passaram à minha janela enquanto eu e Nasreen esperávamos. Nasreen nunca falava nem sorria. Ficava sentada, à espera que o pai e a mãe aparecessem.

Eu sabia que tinha de fazer algo.

Ouvi rumores sobre uma escola secreta para raparigas que ficava por detrás de um portão verde, num caminho perto da nossa casa. E queria muito que Nasreen frequentasse essa escola. Queria que ela conhecesse o mundo, que estudasse, como eu tinha feito. Queria que ela falasse de novo. Assim, um dia, Nasreen e eu apressamo-nos a chegar ao portão verde. Felizmente, nenhum talibã nos viu. Bati ao de leve. A professora abriu o portão e corremos para dentro. Atravessamos o recreio da escola – uma sala numa casa particular cheia de raparigas. Nasreen sentou-se ao fundo da sala. Quando a deixei rezei: “Por favor Alá, abre-lhe os olhos para o mundo.” Nasreen não falou com as outras raparigas. Também não falou com a professora. E em casa manteve-se em silêncio.

Eu receava que os talibãs descobrissem a escola. Mas as raparigas eram espertas. Entravam e saíam a diferentes horas para não levantar suspeitas. E quando os soldados se aproximavam do portão, alguns rapazes desviavam a sua atenção. Ouvi falar de um talibã que bateu ameaçadoramente no portão, exigindo que o abrissem. Mas tudo o que encontrou foi uma sala cheia de raparigas a lerem o Corão, o que era permitido. As raparigas tinham escondido os seus trabalhos, enganando assim o soldado.

Uma das raparigas, Mina, sentava-se junto de Nasreen todos os dias. Mas nunca falavam uma com a outra. Enquanto as raparigas aprendiam, Nasreen vivia fechada em si mesma. A minha preocupação agravava-se. Quando a escola fechou para as longas férias de inverno, Nasreen e eu sentávamo-nos junto ao fogão. Alguns familiares poupavam comida e lenha para nos dar.

Mais do que nunca, tínhamos saudades da mãe de Nasreen e do meu filho. Alguma vez viríamos a saber o que tinha acontecido?

No dia em que Nasreen regressou à escola, Mina sussurrou-lhe ao ouvido:
—Tive saudades tuas.
—E eu também —respondeu-lhe Nasreen.

Com aquelas palavras, as primeiras desde que a mãe fora à procura do pai, Nasreen abriu o seu coração a Mina. E sorriu pela primeira vez desde que o pai fora levado à força. Pouco a pouco, dia após dia, Nasreen finalmente aprendeu a ler, a escrever, a somar e subtrair. Todas as noites mostrava-me o que descobrira naquele dia. Abriam-se, para Nasreen, as janelas naquela sala de aula. Conheceu e estudou os artistas, os escritores, os sábios e os místicos que, muito tempo antes, tinham tornado Herat importante.

Nasreen já não se sente só. O conhecimento que vai acumulando estará sempre com ela, como um bom amigo. Agora ela pode ver o céu azul para lá das nuvens escuras.

Quanto a mim, tenho a consciência tranquila. Continuo à espera do meu filho e da sua mulher. Mas os soldados nunca poderão fechar as janelas que se abriram para a minha neta.

Insha’ Allah
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Nota da Autora
O Fundo Internacional para as Crianças, uma organização sem fins lucrativos que se dedica a ajudar crianças de todo o mundo, contactou-me para escrever um livro baseado numa história verdadeira. Senti-me imediatamente atraída por uma organização no Afeganistão que fundou e apoiou escolas secretas para raparigas durante a ocupação Talibã, entre 1996 e 2001. O fundador destas escolas —que pediu anonimato —partilhou comigo a história de Nasreen e da sua avó. O nome de Nasreen foi alterado.

Antes de os Talibãs controlarem o Afeganistão:
70% dos professores eram mulheres;
40% dos médicos eram mulheres;
50% dos estudantes de Cabul eram do sexo feminino.

Depois da ocupação Talibã:
as raparigas estavam proibidas de frequentar a escola ou a universidade;
as mulheres estavam proibidas de trabalhar fora de casa;
as mulheres estavam proibidas de sair de casa sem um familiar do sexo masculino;
as mulheres eram obrigadas a usar a burca que cobria toda a cabeça e o corpo, deixando apenas uma pequena abertura para os olhos;
não era permitido cantar, dançar ou lançar papagaios. As artes e a cultura foram banidas na terra natal do famoso poeta Rumi. As esculturas colossais de Bamiyan Buddhas, esculpidas na montanha, foram destruídas.

Tinham começado anos e anos de isolamento e de terror. Mas também havia atos de coragem de cidadãos que desafiavam, de muitas formas, o regime Talibã, incluindo o apoio a escolas secretas de raparigas. A sua coragem nunca vacilou.

Jeannete Winter
Nasreen’s Secret School – A true story from Afghanistan
New York, Beach Lane Books, 2009
(Tradução e adaptação)

A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
es@contadoresdehistorias.com