O dia de Rosa Parks estava a correr bem.
A mãe estava a recuperar da gripe e
viera tomar o pequeno-almoço à mesa. O marido, Raymond Parks, um dos melhores
barbeiros do condado, tinha sido convidado a fazer algumas horas extra na base
militar local. E o primeiro dia de dezembro era sempre especial, porque o Natal
estava próximo.
Em breve, na secção dos arranjos de
costura, todas iriam estar muito ocupadas. As senhoras de Montgomery, jovens ou
idosas, precisariam de pequenos ajustes nos seus vestidos de cerimónia ou nos
seus fatos e blusas domingueiros, quer fosse uma flor a bordar ou um debrum de
veludo a acrescentar.
E Rosa Parks era a melhor costureira de
todas. A agulha e o fio voavam nas suas mãos, qual fada a tecer fios de oiro.
As outras costureiras diziam que ela tinha dotes mágicos. Rosa ria:
— Não são dotes mágicos, apenas
concentração.
♣♣♣
Havia dias em que Rosa nem sequer
almoçava para acabar tudo a tempo. Mas, nesta quinta-feira, o trabalho estava
adiantado e a supervisora disse-lhe:
— Por que não vais mais cedo para casa,
Rosa? Sei que a tua mãe está doente e que podes precisar de estar com ela.
A supervisora sabia que ela só saía
quando o trabalho estivesse feito mas, como estavam apenas no início de
dezembro, tinham tempo. Rosa ficou satisfeita. Chegaria mais cedo a casa e,
como o marido trabalhava até mais tarde, talvez o surpreendesse com um empadão.
Despediu-se das colegas e encaminhou-se para a paragem de autocarro. Procurou
uma moeda no bolso para não ter de pedir troco. Entrou no autocarro, pagou a
viagem e saiu de novo, dirigindo-se à porta de trás: os negros não podiam
entrar pela porta da frente. Rosa reparou que os lugares reservados a negros
estavam todos preenchidos, mas que havia lugares vagos na secção neutra do
autocarro, onde negros e brancos se podiam sentar.
O lado esquerdo tinha dois lugares vagos
e o direito estava já ocupado por um homem. Rosa sentou-se junto dele. Não se
lembrava do seu nome, mas conhecia-o e ao filho dele, Jimmy. Este era visita
frequente da Associação de Jovens Afro-Americanos. Trocaram algumas
palavras e o autocarro começou a andar.
Rosa procurou não incomodar o pai de
Jimmy com as suas sacas. O autocarro ia já cheio e os dois lugares da esquerda
estavam agora ocupados por negros. Pensava no jantar desse dia quando ouviu o
motorista gritar:
— Já disse que preciso desses lugares!
Surpreendida, Rosa Parks levantou os
olhos. Os dois negros já se tinham levantado e dirigido para a parte traseira
do autocarro. O pai de Jimmy murmurou:
— Não quero ter problemas. Vou lá para
trás.
Rosa levantou-se para o deixar passar
mas sentou-se de novo.
— Não dificulte as coisas! — gritou o
motorista.
— Por que se mete sempre connosco? —
perguntou ela, num tom de voz calmo e determinado.
— Vou chamar a polícia! — ameaçou o
homem.
— Faça o que tiver a fazer — continuou
Rosa.
Não se sentia amedrontada. Não
tencionava abdicar do que sabia estar certo.
Alguns brancos diziam em voz alta que
ela devia ser presa e posta fora do autocarro. Alguns negros, temendo algo
violento, saíram do autocarro. Outros ficaram, murmurando:
— Aquela é a secção neutra do autocarro.
Tem todo o direito de ali estar.
♣♣♣
E ali continuou Rosa Parks.
Enquanto esperava pela polícia, Rosa
pensava em todos os homens, mulheres e jovens corajosos que lutavam pelos
direitos cívicos. Recordava uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos,
de 1954, que decretara que “separado” queria dizer “inerentemente desigual”. E
sentia-se cansada. Não cansada do trabalho, mas cansada de ter de pôr sempre os
brancos em primeiro lugar.
Cansada de descer dos passeios para
deixar passar os brancos, cansada de comer em balcões separados, cansada de
estudar em escolas separadas. Estava cansada de entradas para “gente de cor”,
varandas para “gente de cor”, fontanários para “gente de cor”, e táxis para
“gente de cor”. Estava cansada de chegar sempre primeiro e de ser sempre
servida em último lugar. Cansada de “estar separada” e de “não ser igual”.
Pensou na mãe e na avó e sabia que elas
queriam que ela fosse forte. Não tinha procurado aquele momento, mas estava
preparada para o enfrentar.
Quando o polícia se debruçou sobre ela e
perguntou:
— Então, tiazinha, vai sair ou não?
Rosa sentiu-se encorajada pela força das
pessoas de cor ao longo de todos aqueles anos e disse:
— Não.
♣♣♣
Jo Ann Robinson estava numa loja quando
soube que Rosa Parks tinha sido presa. Estava a comprar macarrão e queijo para
acompanhar o peixe que ia servir ao jantar. Uma colega do Conselho Político das
Mulheres aproximou-se dela e relatou-lhe o ocorrido. A reação foi:
— Não pode ser! Diz a toda a gente que
temos reunião hoje à noite, às dez, no meu escritório.
A Sra. Robinson era professora no
Alabama State, a universidade frequentada exclusivamente por negros, e tinha
sido recentemente eleita Presidente do Conselho Político das Mulheres.
Apressou-se a ir para casa fazer o jantar, arrumar a cozinha e deitar os
filhos. Depois, despediu-se do marido e foi para a faculdade.
♣♣♣
As vinte e cinco mulheres ali reunidas
rezaram para que a sua fosse a atitude certa. Iam usar a impressora e o papel
timbrado do Estado do Alabama sem autorização. Se fossem apanhadas, podiam ser
presas. Mas era sua convicção de que estavam a agir para sabotar uma lei
injusta. A atitude corajosa de Rosa Parks guiá-las-ia.
Formaram grupos e distribuíram tarefas.
Concentraram-se no estêncil, a parte mais difícil. Um só erro implicaria uma
página inteira deitada fora. Os panfletos diziam: NINGUÉM ANDA DE AUTOCARRO
HOJE. APOIEM MRS. PARKS. ANDEM A PÉ. Tinham sido feitos panfletos em quantidade
suficiente para todos os negros de Montgomery. A maioria achava que a decisão
do Supremo Tribunal de que a segregação não era sinónima de igualdade os
ajudaria, mas estavam enganados.
Pouco depois dessa decisão judicial,
Emmett Till, um rapaz de catorze anos do Mississipi, tinha sido linchado e o
seu funeral acompanhado por mais de cem mil pessoas. Agora, semanas após a
libertação dos seus assassinos, Rosa Parks tinha tomado uma atitude corajosa e
todos estavam decididos a apoiá-la. Todos se reuniram em torno do Reverendo
Martin Luther King, Jr., que tinha concordado em liderar o protesto.
— Não viajaremos de autocarro — disse
este, no comício. — Andaremos a pé até que a justiça jorre como a água e a
igualdade flua como um rio poderoso.
E todos andaram a pé. À chuva, ao sol,
de manhã cedo, quando já era noite cerrada, no Natal, na Páscoa, no 4 de Julho,
no Dia do Trabalhador, no Dia de Ação de Graças e outra vez no Natal.
De todos os Estados Unidos vieram
sapatos, casacos e dinheiro, para que os cidadãos de Montgomery pudessem andar.
Todos estavam orgulhosos deste movimento não-violento. A força anímica que os
sustinha iria animar ainda muitos protestos nos anos a vir.
A 13 de Novembro de 1956, quase um ano
depois da prisão de Rosa Parks, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decretou
que a segregação era ilegal. Fosse nos autocarros ou nas escolas.
♣♣♣
Rosa Parks tinha dito “Não” para que o
Supremo Tribunal pudesse lembrar ao país que a Constituição não contemplava
cidadanias de segunda classe. Somos todos iguais perante a lei e todos temos
direito à sua proteção.
A integridade, a dignidade e a força
tranquila de Rosa Parks transformaram o seu “Não” num “Sim” à mudança.
Nikki Giovanni; Bryan Collier
Rosa
New York, Square Fish, 2008
(Tradução e adaptação)