quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Mozart, o menino mágico

Mozart, o menino mágico
Havia um cravo no meio do quarto e uma janela a dar para a rua. O cravo não era uma flor e sim um instrumento polido, elegante, bonito, capaz de fazer música, de encher os dias com o som suave das suas teclas brancas e negras, com a alegria dos seus acordes, das suas harmonias leves e limpas como a voz do vento.
O menino levantou-se do chão, sentou-se no banco almofadado e pousou as mãos pequeninas sobre as teclas. Que música ia nascer dos seus dedos saltitantes como pássaros contentes com a chegada da Primavera?
Atrás do menino havia um vulto e atrás do vulto uma luz igual à que cobre as telas dos pintores. O menino gostava da luz e o seu sorriso de menino feliz era já uma espécie de música a enfeitar a vida da casa.
"Amadeu", — disse a voz atrás do menino —, "hoje tens ainda muito trabalho pela frente, dois minutos para estudar, uma longa lição para aprender."
O menino gostava que soubessem que, para ele, tocar era uma maneira de brincar e que o cravo, o piano e o violino bem podiam tomar o lugar dos cavalos de pau, dos soldadinhos de chumbo, das máscaras de cartão.
Um dia o menino desenhou a giz um rosto no chão, uma andorinha no tapete persa, uma borboleta na tampa do cravo. Depois inventou letras gémeas dos algarismos e das notas de música e deu nomes raros às melodias que lhe esvoaçavam na cabeça, roubando-lhe o sono e o
sossego.
Os dedos do menino saltavam, nervosos, de tecla para tecla, de música para música. O vulto, atrás do menino, era familiar e meigo. Chamava-lhe Pai, queria-lhe muito. À frente, num trono alto, um homem enfeitado de ouro ouvia, atento, a música que nascia dos dedos pequenos do menino. Chamavam-lhe Imperador e era senhor de uma cidade luminosa chamada Viena. Gostou do que ouviu e disse: "Há-de ir longe, muito longe este menino". Não se enganava, o Imperador.
O menino não gostava de castigos, de notas desafinadas, de ralhetes, de sons de trompete. Amava a doçura do cravo e a voz alta e sonante do piano. Queria tocar com os dedos pequeninos o horizonte da música. Não lhe faltava nem vontade, nem saber, nem engenho. Era um menino mágico igual aos dos sonhos e das lendas.
Um dia o menino faz as malas, guarda nelas, bem guardados, os brinquedos e as partituras, pega na mão da irmã, na mão do pai, nas rédeas do vento e lança-se na lonjura dos caminhos. Hoje Munique, amanhã Paris, depois Bruxelas e Coblenz, mais adiante Londres e Frankfurt. O menino aprende os nomes das cidades e das gentes que se deixam assombrar em salas brilhantes e grandes com o som da música que nasce, irrequieta, dos seus dedos.
"Chegou o dia", diz o pai do menino, "de mostrares as tuas sinfonias". O menino achava que era ainda cedo, mas gostava de obedecer à vontade do pai. Escreveu no caderno de viagem os nomes de Bach e de Haendel e da música de ambos fez companhia fiel para concertos e andanças. A música era agora o seu único brinquedo, a festa dos seus dedos pequeninos e velozes sobre as teclas brancas e negras.
Rendem-se as cidades à magia dos seus dedos que inventam trios e sinfonias como cascatas de som. Hoje Haia, amanhã Paris, depois Milão, de novo Londres e Munique.
O menino está doente e cansado. Chamam-lhe prodígio, menino-prodígio, e ele não gosta.
Prefere que lhe chamem apenas menino, ou então Wolfgang Amadeus, Amadeu para os amigos que com ele partilham a viagem destes versos.
O menino gosta de fazer amigos. Florença é uma cidade bonita, clara e cantante, com praças, igrejas e mercados. Um outro menino com dedos mágicos como os seus toca violino e gosta de brincar. Chama-se Tomás e tem olhos azuis. A música os junta, a música os separa.
Cada um segue o seu rumo, que as estradas de fazer amigos nem sempre são iguais às de fazer música.
Em Roma há quem diga: "Uma grandeza assim só em Miguel Angelo". O menino não sabe quem seja, se é músico ou pintor, mas pressente que é alguém tão alto e brilhante como as catedrais do mundo na hora fantástica em que todos os sinos chamam para a festa. O menino
tem nos ouvidos o eco imenso dos aplausos. Que lhe dêem, doravante, tudo menos silêncio e escuridão.
O menino não gosta de usar cabeleira postiça, casaca bordada a ouro, pó na face. Mas que há-de fazer? Toca nos salões, nas salas de concerto para gente rica e exigente e só lhe resta seguir a moda, respeitar o gosto de quem manda. Ninguém espera que ria, que brinque, que salte e que corra. Mas ele, às vezes, lembra-se que ainda é menino e em vez de música deixa uma pirueta, uma careta na lembrança de cardeais e de duques.
O menino também sabe cantar com uma voz fina e perfeita que enche as capelas e os salões. Canta um Miserere e Roma fica de joelhos a adorar nele uma santidade que não tem, uma realeza que não quer ter. Ele é somente um menino, um menino de músicas mágicas, mas ainda e sempre um menino.
Às vezes o menino sonha que tem altura de estátua, largura de rio, tamanho de onda.
Depois acorda em sobressalto e sobra-lhe do sonho que teve uma réstia de som, um farrapo de música, um ímpeto de sinfonia. O menino descobre que cresce ao ritmo dos sonhos que de noite e de dia o visitam, à velocidade luminosa dos astros.
O menino acrescenta palavras à música, dá voz a personagens, dá corpo a reis e a mitos, dá nome a cidades e a séculos. Tem catorze anos e escreve uma ópera. Depois escreve uma cantata para casar um arquiduque. Dá nomes às óperas: Mitridate, Lúcio Silla, Finta Giardiniera. O mundo é um tapete de espantos e vénias que se desenrola a seus pés.
O triunfo é um pássaro que lhe cabe na concha da mão. Mas apetece-lhe ser sempre menino. Para sempre menino, como se pudesse ser esse o seu destino.
O menino está em Paris, mas pertence a todas as cidades que amam a sua música, que cantam na voz das suas óperas e cantatas. Paris abre-lhe portas que a tristeza se apressa a fechar. Parte a mãe para um lugar aonde não chega, nunca chegará, o som da sua música. O menino está só e infeliz. Sente-se indefeso como todos os meninos. Volta a casa e chora, dobrado como um menino triste, no colo do pai que o consola.
O menino sonha com uma flauta que seja mágica, com uma música que seja diferente.
Usa a língua italiana nas primeiras óperas e a língua alemã, a que entra no que diz e no que escreve, para escrever outras a que chama: Flauta Mágica, O Rapto do Serralho. Todas lhe exaltam a mão esquerda, a mágica mão que dança sobre as teclas como uma bailarina com véus de sonho e de brisa.
Há um vulto ao lado do menino, que não é o de seu pai, nem o de um anjo protector. É um vulto que se escreve com nome de música. Chama-se Joseph Hayden e diz: "Compositor maior, senhores, nunca eu vi ou ouvi". O menino torna-se gigante na admiração e no afecto dos que o
ouvem tocar. É um menino gigante com um riso alegre e sonoro como é sempre o riso dos meninos quando a música os faz felizes.
O menino é pálido, magro, doente. Mesmo quando a febre e a fadiga o levam à cama, não deixa de compor, de escrever, de inventar sinfonias e concertos, de mandar cartas, de endereçar mensagens. Não sabe nem quer parar. Não é capaz. Há nos seus olhos uma luz que não se apaga e que o faz ter sempre rosto de menino, idade de menino, gestos de quem ainda deixou muito para brincar.
As mãos do menino cantam, dançam, inventam. São mágicas como o riso do menino.
Quando se erguem no ar, fazem crescer a força da música que acorda as cidades, de Salzburgo, onde nasceu, até Milão, Paris ou Londres, que não se cansam de dizer: "Como tu nunca vimos igual". Mas o menino sente que o elogio é coisa incómoda, de feição só para gente idosa. Dá uma gargalhada e nasce uma nova sinfonia.
As mãos do menino esbanjam o dinheiro que ganham com pequenas e grandes coisas, com festas e com surpresas, presentes e brindes. O menino é generoso e gosta de ser amado.
Só se sente feliz quando, à sua beira, os outros também são felizes. É essa, afinal, a lei de ouro da sua música.
O menino sabe que a harmonia do mundo começa e acaba na sua música. Fora dela é a desordem, a tristeza, a doença. Façam-lhe tudo menos estragar, ofuscar a luz da sua música.
Vê-lo-ão em fúria, com mãos ameaçadoras e palavras altas e graves, se lhe maltratarem uma sinfonia, uma cantata, uma ópera.
O menino esquece-se do tempo. A música acena-lhe de dentro da noite, chama alto por ele. E ele perde o sentido das horas, deixa escapar por entre os dedos o fio do tempo. Compõe, compõe sempre, com uma pressa só igual à de quem corre contra o tempo por saber que já não tem tempo. Dorme sem ter horas, escreve sem ter fome ou sede, inventa-se e reinventa-se no muito que faz como se lhe restassem poucos dias para o fazer, para o sonhar.
Engana-se quem o festeja, quem o quer adulado e adorado. Para ele só a música conta e a ternura dos que ama, a da mulher, do pai, dos amigos. A música não é uma casa, nem uma estrada, nem uma lua acesa a medo no escuro da noite. A música é um universo povoado por cometas, planetas e sóis de mil e uma cores. E ele é o único habitante capaz de pôr ordem nesse universo, de lhe dar harmonia, sentido e voz.
Há quem não goste que o menino toque de igual modo para os que tudo têm e para os que são donos de nada. Para uns querem brilho, para outros silêncio apenas. Mas o menino não faz distinção entre uns e outros. Para ele há os que sabem e os que não sabem ouvir. No meio está uma espiral de sons, de notas mágicas, que cresce com os sonhos do menino.
O menino tem já a idade das sinfonias e das óperas que compôs. Cresceu, mas não deixou de ser menino. Acorda quando o dia acorda e passeia pela casa arejada e branca as ideias novas, as melodias cantantes, os fragmentos de música que depois vão salpicar de notas as partituras, os cadernos. Nenhum dia é igual ao outro dia. Sucedem-se, diferentes, porque a música que os habita também nunca se repete.
Um dia, um rei diz ao menino: "Esta ópera é muito bela, mas tem notas a mais". O menino, que é rei e senhor da sua música, fica sisudo e responde: "Só tem as notas que são precisas". Aos reis, aos imperadores, aos arquiduques só se responde quando eles pedem uma resposta. Mas o menino, que também é rei, à sua maneira, responde com as palavras que acha justas e acertadas. Não precisa de coroa nem de trono.
Há um muro de inveja levantado à volta do menino. Mas ele não se importa porque sabe que há uma luz que nada nem ninguém impedirá de entrar na sua música. Cobiçam-lhe a alegria, o génio, o gosto de ser menino, o riso e o prazer de ser livre. Mas ele não se importa porque sabe que há na sua música uma voz a que nenhuma outra voz se pode sobrepor, por ser única e imensa.
O menino nunca abandona aqueles que ama. A música é a ponte que os liga. Constança, sua mulher, adoece e o menino, que a vida tornou crescido e atento a tudo, toca para ela, para que a febre baixe e a dor não lhe roube o sono. "Dorme, Constança, dorme porque há uma música bonita que traz sonhos nas asas e os poisa sobre as tuas pálpebras".
A doença começa a lançar um véu de tons sombrios sobre os olhos do menino, que nunca pára de tocar, nem para dormir nem para comer. O menino sente que uma grande pressa lhe magoa o peito e lhe agita os dedos. Todas as horas se tornam apenas instantes quando tem de compor. Todos os dias se tornam minutos quando tem de tocar. Uma vida inteira, mesmo longa, seria breve para toda a música que tem dentro da cabeça.
Hoje um acto de ópera, amanhã um andamento de sinfonia ou de concerto, uma cantata, um divertimento. O menino sente que a febre lhe arde nos olhos e que a noite lhe adormece nos dedos. Tem pressa, cada vez mais pressa. Chegam amigos, mas não está para eles; quer estar só. Só, com a música toda que tem para escrever.
Um homem visita o menino sem deixar o nome. Fala de alguém que partiu, da pena que sente, da tristeza que o verga. Quer uma música que saiba dizer tudo isso e muito mais, que diga a sombra e a mágoa. A encomenda está feita, o preço combinado: cem ducados. Ficará pronto, promete o menino, em quatro semanas. Com o Requiem, que é assim que a obra se chama, cresce, veloz, a tristeza do menino.
Um pássaro vestido de névoa pousa no parapeito da janela do quarto do menino. Anuncia dias sem luz, horas magoadas e sombrias. E o menino trabalha, trabalha sempre, no desamparo da cama desfeita, da comida entornada, da febre a subir, do corpo a doer. Tem pressa, muita pressa, mas o tempo não chega para cumprir a promessa.
O pássaro está pousado dentro do sono do menino a vigiar-lhe os sonhos, a seguir-lhe as ideias, a afugentar-lhe a febre com um constante bater de asas. A cabeça do menino está cheia de música. Entram e saem do quarto aqueles que ama. "Está tão doente o menino", lamentam-se. Ele não os pode ouvir, que os seus ouvidos são conchas, búzios e casulos onde a música não cessa nunca de tocar.
O menino adormece e acorda, desmaia e volta à razão. Deixou de poder distinguir a noite do dia, a sombra da luz. E a pressa, essa, nunca abranda. "Tenho o Requiem para acabar, não faltarei à promessa". Mas falta sem querer faltar. Quando vêm buscar a obra, o menino fecha
os olhos e já não está para responder, seja a quem for.
É mais triste que a tristeza o dia da despedida. O menino vai deitado com tão pouca companhia: as lágrimas de quem sempre soube amá-lo, a sinfonia grave da chuva, mais a cantata do vento, mais a ópera do silêncio. Há um pássaro pousado no poleiro alto de um cedro a dizer adeus, baixinho, com um leve bater de asas. "Adeus, menino, adeus que saudades já temos de ti..."
No patamar de uma nuvem está um cravo aberto, um piano com teclas de vento. O menino senta-se e toca e as estrelas em volta começam a cantar. Passa um cometa e diz: "Bonita música essa, Amadeu. Passa um meteoro e murmura: "Ensina-me também a cantar, Amadeu". Cá em baixo, na terra, enfeita-se o silêncio com o eco de mil coros. O menino guarda a partitura e viaja sobre um raio de luz até ao planeta distante onde só a música pode ser rainha.
Está um pássaro pousado nas teclas de um piano, está um pássaro a cantar enquanto a noite dorme. O menino brinca com a lua, veste casaca bordada a ouro e tem cabelos feitos com fios de prata.
Voltou a ter a idade saltitante dos brinquedos e dos sonhos. O seu riso é do tamanho da alegria do mundo. Tudo em redor se cala só para o ouvir tocar, com o encantamento imenso que apenas a magia é capaz de explicar. Até já, até sempre, Amadeu!
José Jorge Letria
Mozart, o menino mágico
Porto, Ambar, 2006
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Encerramento da BECRE para remodelação - 26 a 30 de Janeiro











A Biblioteca Escolar e Centro de Recursos Educativos - BECRE - vai encerrar temporariamente para remodelações.
As remodelações estão a acontecer. Vai ser só uma semana - de 26 a 30 de Janeiro.
O espaço vai ser ainda mais agradável, com mobiliário novo (sofás, poufs, estantes, etc.) e uma nova disposição.
Esperamos por ti neste espaço renovado.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Foge, Élie

Foge, Élie!
Para a Liane Krochmal, comboio 71.
Para a Liliane,
Para o Pierre,
Para o Philippe,
que nunca cresceram verdadeiramente.
Para todas as crianças escondidas
e aquelas que não tiveram a sorte
de o ser.
Saímos sem fechar a porta à chave.
A mamã chorava.
Era uma manhã de Junho, mesmo antes do fim das aulas.
Eu estava a jogar às damas com bocadinhos de pão, nos quadrados do oleado da cozinha.
O Sr. Perrier, o nosso vizinho que era polícia, veio bater à porta.
Sussurrou qualquer coisa ao meu pai.
Escutei: «Ralph… Yves».
Não conhecia ninguém com esses nomes.
O meu nome é Élie.
A mamã fez-me meter algumas roupas à pressa na pasta. Meti também o livro de Robinson Crusoé que tinham acabado de dar-me quando fiz sete anos.
― Vamos esconder-te no campo e depois vimos buscar-te.
― Depois de quê?
Tive de enfiar o sobretudo por cima da camisa cinzenta. Era quase Verão, estava quente. Percebi que era para que não vissem a estrela amarela que a mamã tinha pregado no dia 9 de Junho, o dia do meu aniversário.
Depois fomos a pé até à estação. Não apanhámos o autocarro. Logo que o comboio saiu de Paris, colei o nariz aos vidros para contar as vacas nos campos.
O papá apertava os dentes. A mamã fungava.
À chegada perguntámos onde era a quinta do Sr. François. No final de um caminho, vimo-lo apoiado num portão ferrugento. Tirou uma beata amarelada da boca.
Não cheirava nada bem.
Eu não queria ficar ali. O papá pôs a mão no meu ombro. A mamã acariciou-me os cabelos:
― Vai ser como nas férias ― disse-me ao ouvido.
Engoli as lágrimas.
Vi uma mulher que empurrava um carrinho de mão ao longo do pântano, e coelhos e patos, como no livro de leitura da escola.
Disfarçadamente, o papá entregou um envelope ao Sr. François.
Antes de partir, a mamã ajoelhou-se diante de mim.
Enquanto falava comigo, estava sempre a levantar a gola do meu sobretudo como se eu tivesse frio.
― Ouve bem, Élie. A partir de agora chamas-te Émile. Émile, estás a ouvir? E o Sr. e a Sra. François vão ser os teus tio e tia. É preciso que te portes bem. Nós voltamos.
Vi-os partir na curva do caminho. Com a pasta às costas, eu já desistira de me mexer.
A Sra. François fez-me entrar em casa. À minha frente, na longa mesa, pousou uma tigela de leite quente. Tinha nata, mas eu não disse nada. A mamã já não estava ali para ma tirar.
Uma mosca esticava as patas na toalha pegajosa. Vi que aqui não ia poder jogar às damas por causa dos horrorosos desenhos de raminhos de flores.
Mais tarde, subi ao sótão para me deitar. Ninguém me deu um beijo de boa-noite. Tinha medo. Chorei durante muito tempo. Por fim, abracei-me ao livro do Robinson e adormeci.
Os cobertores picavam.
Tive um pesadelo. Estava numa ilha deserta. O Sexta-Feira vinha atrás de mim para me matar e eu corria em volta de um pântano lodoso.
De manhã fui acordado por gritos:
― Émile! Émile!
Lembrei-me que era eu. Tinha aulas.
O professor fez logo troça de mim diante dos outros por causa da minha pronúncia parisiense. Depois, fizemos um ditado.
Dei tantos erros que tive de enfiar as orelhas de burro até aos olhos, e a minha folha de ditado foi arrancada e pregada com um alfinete na minha camisa. Quase no mesmo sítio da estrela que a Sra. François tinha descosido a resmungar:
― Este ainda nos vai levar a todos para a prisão!
Nos dias seguintes, fiquei de castigo, sem recreio. Tive de copiar cem vezes:
― Não se escreve "Tens deportar-te bem"; escreve-se "Tens de portar-te bem."
Em Paris, eu era o primeiro da turma e a minha caneta nunca esborratava.
Depois, chegaram as férias grandes. O papá e a mamã não vieram buscar-me. Durante todo o Verão, dei de beber aos animais e aprendi a levar as vacas até ao prado. A Capucine era a minha preferida. Contava-lhe tudo. Ela tinha um focinho branco e cor-de-rosa, quente e doce. Doce como o Totor, o meu urso, que deixei ficar em Paris.
Tinha lido o Robinson todo e já não tinha medo do Sexta-Feira. Mas, quando regressei às aulas, ainda tinha medo do professor.
Mas tinha sobretudo medo de uma coisa: que fizessem mal ao papá e à mamã, que eles nunca mais pudessem vir buscar-me, que se esquecessem do lugar onde me tinham escondido, que não me reconhecessem porque eu tinha crescido muito.
Até tentei deixar de comer para parar de crescer, mas não consegui. Tinha muita fome. Os François diziam-me sempre que eu comia por quatro, que não tinha sido um bom negócio e que veriam o que fazer porque o envelope em breve ficaria vazio. Riam-se.
Um dia, disseram que a França estava cortada em duas. Noutro dia, também falaram de Ralph e de Yves. Eu rodava a manivela do moinho de café a fingir que era o comboio.
E, depois, deixou de haver café.
Voltou o Inverno. Tinha-me habituado a lavar-me na bomba. A água gelada esguichava na banca de pedra. Havia água quente na torneira do fogão a lenha, mas era reservada para o grande banho de domingo, antes da missa.
Para fazer chichi e o resto, era preciso ir lá fora, para cima do esterco, atrás do celeiro.
― E que ninguém te veja! ― avisara-me o Sr. François.― Despachado como tu és, ainda nos levas a todos presos…
Mas ele não se preocupava nada.
Ao ver o meu espanto, a Sra. François acrescentou:
― É como com a estrela, quando chegaste cá a casa; tem a ver com a guerra…
Não percebia nada. Ainda não tinha feito oito anos.
Foi nessa altura que me apercebi que a velha vizinha dos François me andava a espiar. Aproveitava para o fazer enquanto lavava os bidões de leite antes da ordenha.
Um dia, fez-me sinal com o dedo adunco para que me aproximasse da cancela.
― Então, menino, esqueceram-se de ti na arrecadação? Os teus pais perderam a tua morada? Nem toda a gente a perdeu… Vais ver o que te espera!
Fugi a correr, cheio de medo. Tinha percebido que ela queria cortar-me qualquer coisa, mas não sabia o quê…
À noite, chamei pela mamã e pelo papá no meu colchão de palha. Só o Tommy, um cão da aldeia, me fez uma visita.
Um dia, vi a Mariette, a neta dela, que parecia má como uma bruxa. Tinha um canivete na mão. Pensei que tinha sido mandada pela avó para me matar, mas ela só queria brincar comigo. Achei-a bonita, com o seu laço vermelho nos cabelos.
Talvez estivesse escondida como eu e não pudesse dizê-lo. Talvez pertencesse à família deles e fosse simpática.
Decidimos brincar os dois.
No entanto, na aldeia, nunca nos tínhamos falado.
Construímos uma cabana. As paredes estavam atapetadas com jornais. A mesa era feita com toros de madeira, a cama com ramos.
Brincámos aos casamentos. Eu era o seu rei, ela a minha rainha.
Fizemos coroas. Mariette era um pouco maior do que eu, mas assegurava-me que não fazia mal, que nos casaríamos para sempre quando tivéssemos idade e a guerra acabasse.
Eu disse que sim. Tinha acabado de fazer oito anos.
Depois veio um Verão e um outro Inverno. A Mariette e eu brincávamos sempre juntos.
Em Abril, ela disse-me que tinha um segredo. Mas que não tinha o direito de mo contar por causa da avó.
― Eu também tenho um grande segredo.
Tinha muita vontade de lhe contar tudo: o falso Émile, a estrela amarela cosida e descosida, os François e o envelope, e os meus pais que me tinham abandonado havia já dois anos.
Nessa quarta-feira tínhamos decidido brincar aos casamentos-quase-de-verdade na igreja, depois da escola. Tinha posto à Mariette uma coroa de papoilas. Entrámos dando as mãos. Numa mancha de luz vimos a avó a rezar. Levantou a cabeça e pregou os dois olhos no meio da minha fronte.
Depressa, a Mariette puxou-me para fora. Ria como uma louca e tinha vontade de fazer chichi. ― Também eu ― disse-lhe. Fomos para trás da igreja. Ríamos, eu de pé, ela agachada.
De repente, olhou-me com um ar estranho. Levantou-se, puxou as cuecas e, a tartamudear qualquer coisa, partiu como uma flecha deixando-me sozinho. Apertei a carcela e fui para casa.
Depois do jantar e da louça, voltei a sair, enquanto os François ouviam as notícias na rádio.
Perto da cavalariça, por detrás do trigo, vi a mãe da Mariette a estender a roupa. Pedi para a ver e a mãe pôs-se a gritar:
― Não há mais Mariette! Acabou-se a Mariette! Chispa daqui! E não te chegues a ela, senão…
Fez um gesto com as mãos como se estivesse a degolar um frango.
― Ala! Como os teus pais! Como os da tua laia!
As molas caíram na relva. Corri para bem longe.
A noite caiu. Corri até mais não poder. Não queria voltar à quinta. Queria encontrar o papá e a mamã. Naquele instante.
Perto da estação, passei ao lado da casa grande, aquela onde diziam que havia todo o ano uma espécie de colónia de férias para crianças. O Tommy, o cão deles, apareceu. Tinha-‑me encolhido nos arbustos. Ele lambeu-me os braços e as pernas.
Eu estava todo arranhado.
Fui acordado por dois camiões.
Era de manhã.
No fosso onde me encontrava, vi tudo: os polícias e os soldados alemães com as suas armas.
Não me mexi nem respirei. Era óbvio que me vinham buscar. Alguém de casa da Mariette deveria ter-me denunciado, ou então, tinham sido os François, por causa do envelope que estava vazio.
Os ramos do pilriteiro estavam a arranhar-me.
Mas os polícias apontaram para a casa grande e entraram pelo terraço com os soldados. De espingarda em punho, fizeram sair todas as crianças em pijama, mesmo as mais pequeninas, que choravam. Atiraram-nas para os camiões, amontoaram-nas aos gritos de Schnell! Schnell!
Ouvi gritar:
― Liane, Liane, volta!
Foi então que vi a pequena, esbaforida por ter atravessado o prado. Quando me viu, teve medo. De pé, por detrás do arame farpado, permanecia imóvel.
― Salta! ― disse-lhe. ― Chamo-me Élie.
Nesse momento chegou o Tommy, todo contente, a uivar. Pensava que estávamos a jogar às escondidas. Não queria calar-se.
― Anda, salta, Liane!
― Não consigo. Foge, Élie!
Não tive tempo de a ajudar. O barulho das botas aproximou-se.
― Não, o miúdo não ― disse o polícia. ― É o Émile, o sobrinho dos François. É da aldeia.
Então, o soldado pegou na pequena pelo braço. A Liane gritava, não queria, defendia-se com todas as suas pequenas forças.
― Tu, volta para a quinta. Mexe-te ― mandou o polícia.
Alguns minutos mais tarde, os dois camiões cheios de crianças passaram por mim na descida. Deixaram uma nuvem de pó. Ouviam-se choros e cânticos através das coberturas fechadas dos camiões.
Sei que a Liane desapareceu para sempre no grande ventre da guerra. Partiram todos. Sim, sei-o. Compreendo. Estou quase a fazer nove anos.
Continuo à espera.
Será que a mamã virá coser-me uma estrela nova para o meu aniversário?
Élisabeth Brami; Bernard Jeunet
Sauve-toi Élie !
Paris, Seuil Jeunesse, 2003
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

domingo, 18 de janeiro de 2009

Origens das coisas - Aspirina

Aspirina

É da casca do salgueiro que vem o princípio activo da aspirina. A salicina e o salicilato, extraídos dessa árvore, eram usados contra a cefaleia na Mesopotâmia, 3 mil anos a.C. No entanto, a aspirina foi patenteada pela indústria alemã Bayer em 10 de Outubro de 1897.
O químico Felix Hoffmann, com a ajuda do professor Heinrich Dreser, sintetizou o ácido acetilsalicílico para aliviar as dores reumáticas do seu pai.
O nome do remédio mais popular do século foi formado assim: 'a' vem de acetil; 'spir' é a raiz do ácido epírico (substância quimicamente idêntica ao ácido acetilsalicílico); e o 'ina' é um sufixo que se adicionava ao nome de todos os medicamentos no final do século XIX.

Curiosidade?...Foi em 1956...

Curiosidade?...Foi em 1956...

53 ANOS DEPOIS ...


quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A flor e o sino

Como é que uma flor e um sino podem caber na mesma história?

Há-de ser difícil. A flor tão rasteira e o sino tão alto nada têm a ver um com o outro. Hão-de pertencer a histórias diferentes.
Talvez sim e talvez não…
A flor tinha acordado, na ponta de um caule, quando o sino se pôs a badalar. Abriu-se de espanto, porque nunca tinha ouvido música assim: tlim-dlão-dlim…
Mas tudo tem uma lógica, um começo, um antes do que está para vir. Nós contamos.
A erva donde a flor nascera tinha rompido a terra como um dedo espetado, que quer chamar a atenção:
— Perguntem-me porque nasci — gritava a erva, numa vozinha de erva-fina.
Ninguém lhe perguntava.
E ela, impaciente, sempre na sua:
— Perguntem-me porque nasci. Perguntem-me.
Estávamos bem servidos, se tivéssemos de dar conversa a todas as ervas do caminho…
— Então, não querem saber? Perguntem-me — teimava a erva.
Fartos de ouvi-la, debruçámo-nos, enfim, para a ervinha.
Logo ela, muito direita, na sua importância de erva fresca, nos disse:
— Nasci, sabem porquê? Nasci para dar uma flor.
Olha a admiração! Nisto o sino, tlim-dlão-dlim, tlim-dlão-dlim, e apareceu a flor.
— Quem me chama? Quem me chama? — perguntou a flor, que nasceu a falar.
O sino anunciava um casamento. Era o José mais a Maria que iam casar.
O noivo, antes de entrar na igreja, colheu, à beira da estrada, uma flor com que enfeitou a lapela. Logo por coincidência, a flor que tinha acabado de nascer.
Aí têm como um sino e uma flor podem caber na mesma história. Mas não acaba aqui.
Passado tempo, a flor desprendeu-se da lapela. Já tinha dado um ar da sua graça. Secou, desfez-se, juntou-se à terra. É sempre assim.
Na Primavera seguinte, mais coisa menos coisa, o sino outra vez a badalar: tlim-dlão-dlim, tlim-dlão-dlim. Desta vez, era um baptizado, o do menino José Maria, filho de Maria e do José.
Depois, houve boda. No centro da mesa, um grande ramo de flores campestres, iguais à que viveu nesta história.
Tudo se multiplica. Pelos tempos fora, o sino vai voltar a bater e as flores a crescer. É uma história que não acaba.
António Torrado

O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

Luca Violeiro (isto é para quem tem unhas)

PORTUGUÊS EXACTO – o sítio da Língua Portuguesa

Tira todas as tuas dúvidas sobre Língua Portuguesa no novo sítio PORTUGUÊS EXACTO!
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sábado, 10 de janeiro de 2009

Autarquia tavirense enviou carta ao ministério de Maria de Lurdes Rodrigues


Autarquia enviou carta ao ministério de Maria de Lurdes Rodrigues

Tavira admite rejeitar competências na área da educação por falta de explicações

07.01.2009 - 18h16 Lusa

Macário Correia critica que o pagamento de salários não abranja a gestão dos serviços afectos a esses funcionários

O presidente da Câmara de Tavira, Macário Correia, admitiu hoje renunciar ao protocolo assinado em Setembro com o Ministério de Educação para a transferência de competências na área para as autarquias, caso a tutela não esclareça alguns pontos.

Mais de 90 autarquias aceitaram novas competências na área da Educação - no Algarve foram sete -, medida há muito reclamada pela Associação de Municípios, mas que tem gerado alguma polémica. A transferência engloba a passagem de testemunho para os municípios de tarefas ao nível da gestão do pessoal não docente, da acção social escolar, construção e manutenção e apetrechamento de estabelecimentos de ensino.

Macário Correia explicou que vai enviar uma carta à ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, a solicitar esclarecimentos sobre o processo no prazo de um mês. Segundo o presidente da Câmara de Tavira, o protocolo, que confia às autarquias o pagamento de salários e a gestão do pessoal não docente e edifícios, não abrange a gestão dos serviços afectos a esses funcionários.

Assim, em vez de transferir as verbas inerentes a despesas correntes, refeitórios e papelarias escolares para as autarquias, o Ministério da Educação transfere-as para os conselhos executivos das escolas. "A transferência de competências não passa pelo mero pagamento de vencimentos, como se de uma tesouraria se tratasse", critica Macário Correia, acrescentando que as autarquias pagam aos funcionários mas não gerem o que eles fazem.

Prazo de 30 dias

O também presidente da Área Metropolitana do Algarve (AMAL) admite que a Câmara de Tavira poderá renunciar ao protocolo, caso o assunto não seja resolvido no espaço de 30 dias, como solicitado na missiva que vai enviar a Maria de Lurdes Rodrigues. "Não faz sentido que os professores andem a gerir bebidas ou o pagamento dos contadores da água e luz", afirmou, considerando estranho que os edifícios passem para a gestão das autarquias e os refeitórios, por exemplo, não.

Macário Correia solicitou ainda uma reunião com a Direcção Regional de Educação (DRE) do Algarve, que foi agendada para daqui a cerca de três semanas, disse o próprio.

No Algarve, o protocolo foi assinado por sete autarquias: Faro, Tavira, Portimão, Silves, Albufeira, Olhão e São Brás de Alportel. Os presidentes das câmaras de Lisboa e de Viseu, que acumula o cargo com o de presidente da Associação de Municípios Portugueses (ANMP), negaram a transferência de competências.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A princesa desencantada

Quando alguma vez, em sonho ou viagem, voltar àquela terra, não poderei esquecer a história que certa tarde lá ouvi.
Contou-ma um ancião, de olhar profundo e barba ruiva, à hora em que me deu para subir ao ponto mais alto da cidade e ver de lá as grandes torres espelhadas na água do rio que ali corre – rio de lágrimas que uma princesa, um dia, então chorou.
Em tempos, este reino fora terra de encanto.
Deixou de o ser a partir do momento em que o rei mandou prender a filha, na mais fortificada masmorra da cidade, por ela achar infame a servidão em que viviam os súbditos do reino.
— Esta é a história de Tristália — resmoneou o velho — e como todas as histórias não é uma história perfeita: o fim parece o princípio e quem uma vez a ouvir logo pedirá que ninguém a volte a repetir.
Fitando a mão trémula que apontava na direcção do rio, vi o desconhecido entrever o lugar onde se erguia a fortaleza em que a filha do rei vivera encerrada. Então ele contou:
Desencantada, como a princesa, com a maldade que, às ordens do rei, cumpria lei, Tristália deixou de ser terra de amor.
Dia e noite, a princesa não parava de chorar. Recomendavam-na às cortes, os nobres, convidava-a o clero a arrepender-se, mesmo temendo que sobre o povo desabassem novas iras do rei.
O mais arrasador dos desencantos, porém, devia-se ao modo com que o rei Severo, seu pai, tratava a rainha Edwiges, sua mãe.
Escandalizavam-se os chanceleres, o episcopado, a nação. De banquete em banquete, o rei Severo é que não.
Por desígnio divino iluminada, resolveu a princesa pôr fim à humilhação.
Qual segredo de estado, determinou sem demora escapar-se da prisão, correr mundo, revoltar-se como só o faz quem tem razão.
Como mais vale fuga que espera, assim foi. Em semanas conquistou as boas-graças do guarda-mor Epaminondas, logo obteve a sela dum fogoso cavalo alazão.
Do tesoureiro Sigesmundo, em poucos dias, elevada quantia em peças de oiro.
Do camareiro Malaquias, em horas, uma poderosa espada de dois gumes.
Planeada a evasão, antes fugir que ficar mal.
Não ia ainda longe o cavaleiro embruxado, de armadura e espada em riste, e já um mensageiro, ao serviço do rei, passava aviso por terras de província e lugarejo.
Entraram as tropas em estado de alerta. Povoaram-se de espias os postos de fronteira.
Um capacete de sombra abateu-se sobre o rosto dos soldados entrincheirados nas esquinas.
À saída da cidade, um mendigo, que acorrera ao som de tão ligeiro trote, interrompeu:
— Onde vos leva esta pressa de viver, senhor do cavalo alazão?
Deixou-lhe o cavaleiro idade a menos que outra coisa não tinha ali na ocasião!
Fugia de si mesmo, não do mundo, o cavaleiro, atrás de si deixando um rasto de miséria e escravidão.
De uma casa em ruínas saiu, de filho ao colo, uma mulher a quem a guerra encontrara vazio o coração:
— Quem feliz fará, um dia, Senhor meu, todo o oiro que levais?
Deixou-lhe o cavaleiro o sol e a lua, que mágoas há na vida que não esquecem mais.
Entretanto, podia alguém adivinhar quem, assim disfarçado, segredava às ervas do caminho quantas vezes subidas honras, por muito que se diga, desonras são?
À porta de um albergue, uma criança, fascinada pelo anel de luz que, na corrida, cavalo e cavaleiro lanço a lanço envolvia, fê-‑los estacar:
— Se na tua espada, Rosa Peregrina, a vontade do povo assim confia, por que não voltas de pronto ao Palácio onde o terror da noite, em boa hora se fez dia?
Deu meia volta o cavaleiro que de si tanto fugia. Aclamado nas ruas de Tristália, juntou‑se o foragido aos Pares do Reino que já nas cortes buscavam herdeiro entre os bastardos que, do rei Severo, então havia.
Largado o manto, aos pés, ninguém ousou dizer que aquele misterioso cavaleiro a coroa não merecia.
— Não há outro encanto — comentou o velho, emocionado — senão o que põe fim à reinação que os reis tiranos, quase sempre, espalham por servidão gratuita ou por mania.
Vergílio Alberto Vieira
O Livro dos Enganos
Lisboa, Editorial Caminho, 2002
Adaptação


O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

Livro do Mês (Janeiro) - Um Homem Com Sorte, Nicholas Sparks

Logan Thibault sempre foi um homem que em tudo se pode considerar comum. No entanto a sua vida estava prestes a mudar… A combater no Iraque, Thibault encontra a fotografia de uma mulher nas areias do deserto, e apanha-a pensando que alguém acabará por a reclamar. Mas ninguém aparece e, apesar de rejeitar a ideia, a fotografia passa a ser encarada como um talismã da sorte que faz com que Thibault sobreviva, sem ferimentos graves, a situações de indescritível perigo.
De regresso aos EUA, o militar não consegue esquecer a mulher da fotografia decidindo procurá-la pelo país. Mas assim que a encontra a sua vida toma um rumo inesperado e o segredo que Thibault guarda pode custar-lhe tudo aquilo que lhe é querido. Uma história apaixonante sobre a força avassaladora do destino.