sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Ali, o burrinho de Sidi Mohammed

Ainda há pouco a enorme duna fulgia de vermelho, mas agora, com o sol cada vez mais a pique, adquirira um brilho amarelo dourado. Ali, o burro, mal repara que as dunas haviam mudado de cor. Só dá conta de que o sol está a incidir-lhe no dorso, cada vez mais quente, demasiado até! Por volta do meio-dia, tornar-se-ia insuportável.
Ali detesta a duna. Detesta o sol que nela incide e aumenta a luz e o calor. Só quando descansa à sombra da palmeira, durante a pausa do meio-dia, é que Ali gosta do sol. Deita-se numa ilha fresca que paira numa concha de luz amarela do oásis. Vê como no começo do ano a cevada se ergue amarela dourada entre as palmeiras e, no Verão, espreita as tâmaras na copa das palmeiras. No entanto, os intervalos de descanso numa ilha fresca acabam demasiado depressa.
Ali põe um casco à frente do outro. As suas pegadas são imediatamente preenchidas até meio pela areia que desliza. Às costas leva pendurados, à direita e à esquerda, dois cestos, dos quais vão escorrendo duas tiras amarelas douradas, areia que o vento arrastara até às plantas do oásis. Ali carrega essa areia de volta para o outro lado da crista da duna.
Atrás de Ali segue Sidi Mohammed. Sidi Mohammed não leva nenhum cesto mas sim um pau, em parte para se apoiar e também para espicaçar Ali, quando ele se mostra cansado. Como Ali detesta a duna, cansa-se com mais frequência do que seria de esperar e Mohammed bate-lhe com o pau no dorso. Por volta do meio-dia, contudo, Ali sente-se realmente cansado. As pegadas parcialmente cobertas de areia dançam-lhe à frente dos olhos, e ele detesta não só a areia e o sol mas também Sidi Mohammed, que não lhe concede ainda descanso algum.
"Espera", pensa Ali. "Espera! Qualquer dia fujo! Depois, carregas tu a areia às costas e bates no teu próprio traseiro quando andares devagar."
Ali já tem três anos e é um burro adulto, mas ainda não viu nada do mundo, para além das palmeiras de Sidi Mohammed e, por cima delas, o céu.
Durante o intervalo do meio-dia, Ali mal olha para as tâmaras maduras. Perdido nos seus pensamentos, vai arrancando umas ervas e esfrega as costas contra uma palmeira. Isto é exactamente o mesmo que o coçar da cabeça de Sidi Mohammed. "Esta noite!", pensa Ali. "Esta noite vou fugir daqui!"
Pelo lusco-fusco, Sidi Mohammed senta-se encostado à cabana. Assim que o sol desaparecer atrás da orla da duna, vai ficar mais fresco. Ali anda a pastar debaixo das palmeiras. Mal escurece, o dono dá um estalido com a língua. Ali acorre obedientemente e desaparece no interior do tabique.
O estábulo de Ali, feito de tábuas, é ao lado da cabana de Sidi Mohammed, e a porta abre para fora. Ali espera até que tudo esteja silencioso, depois levanta-se e força a cabeça pela frincha da porta. Sidi Mohammed tinha deixado a caixa de pé contra a porta. Esta cai no chão de areia. Cheio de medo, Ali espera uns momentos antes de meter o corpo pela frincha da porta. Nada, está tudo calmo!
As estrelas brilham tão intensamente que Ali consegue, sem dificuldade, ver as pegadas na areia. Não sabia que, de noite, as dunas eram tão frias. O ar também é frio. Ali está cheio de frio mas, sem os cestos, faz a subida rapidamente.
Na crista da duna volta-se mais uma vez. Ao fundo da duna, vê as folhas das palmeiras pretas e um ângulo da cabana de Sidi Mohammed. À frente dele, estende-se o deserto, o mundo onde Sidi Mohammed não manda.
E agora, para onde ir? Ali quer seguir em frente, mas em que direcção?
Quando, ao fim de muito tempo, a orla do céu começa a clarear e depois o sol se levanta rapidamente, Ali ainda está a caminhar sem ter visto uma palmeira. Não consegue deixar de pensar no poço de água do oásis. Mas a água, agora, está muito longe.
Terá seguido na direcção errada? Talvez os oásis, as palmeiras, os pastos dos camelos e os poços de água sejam na direcção do pôr do sol. Será melhor voltar para trás? Ali não sabia que também se fica cansado e triste sem cestos de areia.
As dunas sucedem-se umas às outras, todas iguais, como se Sidi Mohammed estivesse a rir-se dele. De repente, Ali dá de caras com um animal sentado, imóvel, na areia. Tem uma cauda espessa, orelhas grandes e pêlo amarelo claro.
— Quem és tu? — pergunta Ali. — Eu sou Ali, o burro de Sidi Mohammed.
O desconhecido olha-o de olhos arregalados de espanto, olhos espertos, e responde:
— Que és um burro, eu sei. Mas és um burro palerma, porque não sabes que eu sou um feneco, uma raposa do deserto.
Ali fica zangado mas, como há horas que não encontra nenhum ser vivo, não deixa transparecer nada. Talvez o feneco possa ajudá-lo!
— O que estás aqui a fazer? — pergunta Ali.
— Ando por aqui a vaguear.
— Também estás à procura de um novo dono?
— Eu não tenho dono, sou livre!
— E quem te dá água e comida? Não vejo por aqui uma única folha de erva!
— És mais burro do que o que eu pensava! Não sabes que todos os animais livres têm de tratar de si? Sou eu que caço as minhas presas, e eu mesmo procuro as nascentes de água. Dá-te por contente por eu não apreciar carne de burro!
— Eu não caço. Prefiro pasto de camelo! — explica Ali dignamente. — Erva é o melhor que podes imaginar! Água, dá-ma o novo dono que vou procurar.
— Aqui não há dono nenhum! — disse a raposa. — Nem erva nem água. Só areia!
— Onde é que há água?
— Isso depende. Se seguires em direcção ao nascer do sol, tens ainda um dia e uma noite pela frente. Se fores em direcção ao pôr do sol, tens meio dia e chegas a um oásis com erva suculenta e água doce. Era o melhor para ti.
— Para aí não quero ir! — atalha Ali rapidamente. — Até hoje andei lá a carregar areia às costas até à crista da duna! Já estou farto, quero ser livre como tu!
— Livre? Então também tens de ser tão rápido como eu e igualmente  corajoso. Não  podes ter  medo da  sede  nem da fome, o calor e o frio não podem incomodar-te. Tens de amar o vento e a areia, tens de evitar os oásis para não seres apanhado pelos homens. E, além disso, precisas de um pêlo diferente. Os animais livres têm um pêlo amarelo cor-de-areia como sinal de que amam o deserto, mas tu tens um pêlo parecido com pó de argila.
Ali fica abatido. Não tinha imaginado que a vida em liberdade fosse tão difícil.
— Queres ser o meu dono — perguntou após uma longa pausa. — Queres mostrar-me como posso tornar-me livre?
— Não quero contrariar-te — respondeu a raposa — mas acho que foste criado para o oásis. Quem nasceu para o deserto sabe sempre o que quer. Tu tens muitas perguntas. No teu lugar, eu regressaria para Sidi Mohammed. Tornar-me-ia útil, para que ele gostasse de morar comigo no oásis dele.
— Eu sou muito útil! — explicou Ali com orgulho. — Sem mim, o oásis há muito que estaria enterrado na areia e não haveria mais tâmaras doces. Sidi Mohammed vai ficar triste por eu ter fugido.
— E que mais queres? Não é belo transformar a tristeza em alegria? Volta para trás, eu acompanho-te. Sinto simpatia por ti, embora sejas um burrito.
E foi assim que o burro e a raposa se puseram a caminho do poente, um com o pé leve, o outro com o coração pesado… pois Ali ia a pensar no pau de Sidi Mohammed.
Mas  como Alá  também  ama os animais, enviou  um sonho a Sidi Mohammed. Este carrega uma jeira de madeira sobre os ombros, de onde pendem, à direita e à esquerda, dois cestos de areia. Devagar, um pé à frente do outro, Sidi avança, ofegante, pela duna acima. O calor do dia é quase tão pesado como a areia que leva às costas. Atrás dele segue Ali. De cada vez que Ali se impacienta, bate com o focinho nas costas de Sidi Mohammed, de tal maneira que o pobre quase cai para a frente. Sidi Mohammed acorda completamente destroçado.
Quando, pela manhã, descobre que Ali fugiu, não fica furioso mas triste. Triste consigo mesmo porque, sem a ajuda de Ali, o bonito oásis ficará soterrado na areia. Sidi Mohammed não tem um camelo e, a pé, não pode ir buscar o burro. Só lhe resta esperar que Ali volte de livre vontade.
O sol já está a pôr-se quando os dois amigos tão diferentes chegam ao seu destino.
— Adeus! — diz a raposa. — Não posso acompanhar-te mais. Estive a pensar em ti. Não é vergonha nenhuma trabalhar no oásis. Quem trabalha é útil e, ao mesmo tempo, valente como os animais livres. Se quiseres, podemos ficar amigos!
— Adeus! — diz Ali, a pensar novamente no pau de Sidi Mohammed.
A raposa afasta-se. As suas patas calcam a areia como uma fiada de pérolas.
Ali inicia  a  descida  até ao  fundo  do  oásis, muito lentamente.
Quando chega às palmeiras, já é quase escuro. Sidi Mohammed está sentado, encostado à cabana. Levanta-se de um salto. "O pau!" pensa Ali, muito assustado. "Ele vai buscar o pau à cabana!" mas Sidi Mohammed não vai buscar o pau. Em vez disso, corre ao encontro de Ali e coça-lhe a cabeça atrás das orelhas.
— Seu desertor! — diz ele. — Ainda bem que voltaste!
Ali, de pé, está muito quieto e sente-se o mais feliz dos burros. E, antes de correr para o poço para finalmente voltar a beber, esfrega a cabeça, agradecido, na túnica de Sidi Mohammed.
Hannelore Bürstmayr
Grün wie die Regenzeit
Mödling, Verlag St. Gabriel, 1986
Tradução e adaptação
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

RTP2 - 24 de Fev às 23:40 BALSA, MEMÓRIA FLUTUANTE(DOCUMENTÁRIO)

Exmos Senhores,


No dia 24 de Fevereiro  às 23:40, na RTP2, vai ser exibido o filme  BALSA, MEMÓRIA FLUTUANTE(DOCUMENTÁRIO), que aborda a memória e o património da cidade romana Balsa, localizada no Concelho de Tavira. 


Este filme é uma produção para a RTP2, com apoios da Câmara Municipal de Tavira, da Direcção Regional da Cultura do Algarve, da CCDR do Algarve, da Junta de Freguesia da Luz de Tavira, do Aldeamento Pedras d'El-Rei, do Museu Nacional de Arqueologia e Direcção Regional da Cultura do Alentejo.



SINOPSE
Ao Porto de Balsa chegavam barcos e mercadorias dos mundos distantes de Roma, Cádiz, de Leptis Magna, de Thamusida, de Lixus e de Cartenna. As suas ruínas, soterradas há mais de mil e quinhentos anos, esperam para revelar uma das cidades mais vivas do Mediterrâneo ocidental.

Link para os primeiros dez minutos do doc:


Ficha Técnica
Guião, Realização e Montagem - José Manuel de S. Lopes
Produção - Gerardo Fernandes/ Disfarce, Produção de Audiovisual
Produção Executiva - José Manuel de S. Lopes
Direcção de Produção - Clara Ferrão
Fotografia e Câmera- Eberhard Schedl
Assistente de realização e som - Rossana Torres

Com:
Nuno Casimiro - Estácio da Veiga
Nuno Afonso - Operário agrícola

E entrevistas de:
Cristina Garcia - Historiadora
Macário Correia - Presidente da CM Tavira até 2009
João Faria - Presidente da CCDR do Algarve

Documentário produzido para a RTP, com participação financeira da Direcção Regional da Cultura do Algarve, CCDR do Algarve e Câmara Municipal de Tavira e apoios da
Junta de Freguesia da Luz de Tavira e Pedras d'el Rei.



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Semana da Leitura 2010




Entre outras actividades (cartaz definitivo a partir de 4ª feira) haverá dramatizações com alunos e professores, declamação de poesia, leituras em vários sotaques, poetas e contadores de histórias, leituras com alunos do 1º ciclo e com encarregados de educação, exposições, passatempos e música. Haverá ainda serviço de bar, ao longo da semana, a cargo dos alunos do CEF.
Não faltes e não deixes de participar!

A rapariga e o homem da lua


(conto tradicional do povo tchuktchi)


Viveu outrora, entre o povo Tchuktchi, um homem que só tinha uma filha. A filha era a melhor das ajudas que o pai podia ter. Passava o Verão inteiro longe do acampamento, vigiando a manada de renas que o pai possuía. E, quando chegava o Inverno, tinha de levar a manada ainda para mais longe. Só de vez em quando é que ela ia ao acampamento buscar comida
Uma noite, quando ela se dirigia ao acampamento no seu trenó puxado por uma rena mais rápida, esta ergueu a cabeça e olhou para o céu.
— Olha, olha! — gritou ela.
A rapariga olhou e viu o Homem da Lua a descer do céu, num trenó puxado por duas renas.
— Onde será que ele vai? E o que irá ele fazer? — perguntou a rapariga.
— Ele quer levar-te — respondeu a rena. A rapariga ficou muito assustada.
— Que hei-de eu fazer? Ele é bem capaz de me levar consigo! — exclamou ela.
Sem dizer uma palavra, a rena começou a escavar com as patas um buraco na neve.
— Vamos, esconde-te nesta cova! — disse ela.
A rapariga entrou lá para dentro, e a rena começou a pôr de novo a neve por cima. Passado algum tempo a rapariga tinha desaparecido, e só um pequeno monte de neve assinalava o lugar onde ela tinha estado.
— Que estranho! — disse o Homem da Lua.— Onde será que ela se meteu? Não sou capaz de a encontrar! O melhor é ir-me embora e voltar mais tarde. Tenho a certeza que então a encontro aqui, e poderei levá-la comigo.
Dizendo isto voltou para o trenó, e as renas levaram-no pelos céus fora.
Assim que ele desapareceu, a rena tornou a tirar a neve, e a rapariga saiu do buraco.
— Vamos depressa para o acampamento! — disse ela.— Vamos antes que o Homem da Lua me veja, e volte cá de novo. Não serei capaz de lhe escapar uma segunda vez.
A jovem subiu para o trenó e a rena partiu mais veloz do que o relâmpago. Assim que chegaram ao acampamento, a rapariga correu para a tenda do pai. Mas o pai não estava. Quem a ajudaria agora?
A rena disse:
— Tens de te esconder porque o Homem da Lua há-de vir atrás de ti.
— Mas onde me poderei esconder? — perguntou a rapariga.
— Vou transformar-te em qualquer coisa... Numa pedra, por exemplo — disse a rena.
— Não, isso não vai dar nada, ele encontra-me na mesma.
— Então transformo-te num martelo.
— Também não serve.
— Numa estaca.
— Também não.
— Num pêlo da pele.
— Não, não.
— Então em que te hei-de transformar? Já sei! Transformo-te numa lâmpada!
— Está bem.
— Então deita-te no chão.
A rapariga deitou-se, a rena bateu com a pata no chão e logo ali ela se transformou numa lâmpada que dava uma luz tão intensa - que alumiava toda a tenda.
Entretanto o Homem da Lua tinha andado a procurar a rapariga entre as suas renas, e chegava agora ao acampamento.
Prendeu as renas a um poste, entrou na tenda e continuou a procurá-la lá dentro. Procurou entre as estacas que suportavam a tenda, examinou todos os objectos e utensílios, meteu as mãos pelo pêlo das peles, procurou debaixo das camas e por toda a parte – mas da rapariga nem rasto.
Quanto à lâmpada, nem deu por ela porque esta brilhava com grande intensidade, a sua luz era tão forte como a luz do próprio Homem da Lua.
— Que estranho! — disse o Homem da Lua. — Onde poderá ela estar? Tenho de voltar para o céu!
Saiu da tenda e foi buscar as renas. Já lhes tinha atrelado o trenó, e estava quase a sentar-se nele quando a rapariga, afastando as peles que estavam à entrada da porta, pôs a cabeça de fora e disse, a rir:
— Estou aqui! Estou aqui!
O Homem da Lua largou o trenó, e correu para dentro da tenda, mas a rapariga tinha-se de novo transformado na lâmpada.
O Homem da Lua começou a procurá-la. Procurou por entre as folhas e os ramos, por entre as peles estendidas no chão... mas da rapariga nem rasto.
Que estranho era tudo aquilo! Onde poderia ela estar? Parecia que teria de regressar ao céu sem ela.
Mas mal ele tinha saído da tenda, assim que se preparava para entrar no trenó, logo voltou a aparecer o rosto da rapariga entre as peles da entrada:
— Estou aqui! Estou aqui! — gritava ela, rindo às gargalhadas.
O Homem da Lua correu de novo para a tenda e começou a procurá-la. Procurou durante muito tempo, virou a tenda do avesso, mas da rapariga nem rasto.
Estas buscas cansaram-no tanto que ficou muito magro, e muito fraco, mal podendo mexer as pernas ou levantar um braço.
Nesta altura a rapariga sentiu que já não havia razão para ter medo dele. Tomou a sua própria forma, saiu da tenda, voltou o Homem da Lua de costas, e atou-lhe as mãos e os pés com uma corda.
— Ai! — gemeu o Homem da Lua.—  Queres matar-me, eu sei!  Pois bem,  então mata--me. Eu mereço a morte porque tudo aconteceu por minha culpa, por te querer levar comigo. Mas antes de morrer, cobre-me com peles, e deixa-me aquecer, que estou gelado.
A rapariga olhou para ele, admirada.
— Gelado?! Tu estás gelado? Tu, que não tens casa, que não tens tenda? Tu pertences ao ar livre, e é aí que deves continuar. Para que precisas das minhas peles?
Então o Homem da Lua começou a lamentar-se. E aqui está exactamente o que ele disse à rapariga.
— Já que eu não tenho casa, como dizes, e estou condenado a nunca a ter, larga-me e deixa-me voar pelos céus. Juro que o teu povo há-de gostar de me ver, juro que lhes hei-de dar prazer. Liberta-me, e eu servirei de farol ao teu povo, guiando-o através da tundra. Liberta-me, e eu transformarei a noite em dia. Liberta-me, e eu medirei o tempo para o teu povo. Primeiro serei a Lua da Velha Rena, depois a Lua do Nascimento das Crias, depois a Lua das Águas, depois a Lua das Folhas, depois a Lua do Calor, depois a Lua da Mudança, depois a Lua do Amor entre as Renas, depois a Lua do Primeiro Inverno, depois a Lua dos Dias Minguados...
— E se eu te libertar e tu recuperares as tuas forças antigas — não virás de novo do céu à terra para me levares contigo? — perguntou a rapariga.
— Nunca mais! — gritou o Homem da Lua.— Prometo que tentarei até esquecer o caminho que leva à tua casa. Tu és inteligente demais. Liberta-me, e eu darei luz ao céu e à terra.
Então a rapariga libertou o Homem da Lua. Ele levantou-se, e voou pelo céu fora, inundando a terra de luz.


Contos Tradicionais da União Soviética
Federação Russa
Lisboa, Edições Raduga, 1990

O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

Livro do Mês - Fevereiro 2010 - "O Perfume dos Limões" (António Torrado)

A escola do meu tempo


"Na Infância as escolas ainda não tinham fechado.
Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas.
Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores."



por Rosa Lobato Faria

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Flora e o violino

Esta manhã, Flora chegou à estação do comboio. A grande estação da grande cidade.
Ontem, caminhou todo o dia para apanhar o comboio.
Viajou toda a noite.
Viajou, ou melhor, fugiu, porque há guerra no seu país.
Uma explosão assustadora, a casa em fogo, e ninguém para apagar o incêndio que começava.
Por isso, Flora enfiou à pressa alguma roupa na mochila, depois pegou no ursinho e não esqueceu a caixa com o violino. E com os pais, fugiu para longe da sua aldeia.
Quando descem do comboio, já estão noutro país. As pessoas têm um ar apressado, falam uma língua esquisita. Flora vê que fazem gestos mas não percebe o que dizem.
Sente-se perdida…
Felizmente umas pessoas muito generosas emprestaram uma casa aos pais de Flora. E na escola do bairro há um lugar para ela, na classe dos mais novos. Vai poder aprender francês, a língua esquisita que ouviu na estação.
No primeiro dia, o pai acompanha-a à escola.
Assim que a vêem, os meninos começam a fazer troça dela.
–– Olha, tem os cabelos cor de laranja!
–– E a cara cheia de sinais!
–– Não é de cá! De onde é que tu vens?
–– Olha os óculos! Eh, tiraste-os à tua avó, ou quê?
Todos se riem. Todos, menos Flora.
Esta manhã, Flora trouxe o seu violino. Depois das aulas vai à escola de música. Ao verem a caixa, os meninos voltam a troçar dela.
–– O que é aquilo? A caixa da metralhadora?
–– Não, é o cesto de ir ao mercado. Ela só come peras!
–– Cuidado, ela escondeu um crocodilo lá dentro!
Todos se riem. Todos, menos Flora. Até fica cada vez mais triste mas ninguém se dá conta.
Ninguém, excepto António que, à saída da escola, se abeira dela.
–– Vais para casa, Flora?
–– Não, vou escola música.
–– Fazer o quê? –– pergunta António.
–– Tocar violino…
–– Queres que vá contigo?
Flora sorri e faz que sim com a cabeça.
Nesta escola ouve-se música por todo o lado, por detrás de cada porta. António reconhece o som de um piano, de um trompete e de uma flauta.
O professor da Flora é muito simpático e deixa António ficar na sala, com a condição de não perturbar.
Flora toca bastante bem tanto a solo, como em duo com o professor. António escuta-os sem se mexer.
Um dia, na escola, as crianças estavam a fazer um desenho quando, de repente, grandes nuvens escuras cobrem o céu. Nuvens de tempestade, que deixam uma pessoa assustada. Os raios caem de todos os lados, o trovão ruge e estala como um chicote. Zás! Não há luz: foi um trovão que cortou a electricidade.
–– Eu vou procurar velas –– diz a professora. –– Fiquem tranquilos.
As crianças estão com muito medo. Gritam e escondem-se a chorar debaixo das mesas. Flora bem gostava de as acalmar. Mas como?
De repente tem uma ideia, uma ideia muito boa.
Muito devagar, tira o violino da caixa, depois o arco…
Um… dois… três sons sobem na escuridão da sala de aula e balançam-se suavemente. Dir-se-ia uma canção de embalar. Depois, uma enfiada de notas forma uma dança. Como toca depressa, a Flora! Escolheu fazer o seu violino cantar uma toada do seu país. É alegre, triste, as duas coisas ao mesmo tempo. E graças a ela, todas as crianças esqueceram a trovoada.
Que pena! A electricidade voltou…
As crianças aplaudem.
–– Obrigada, Flora, muito bem! –– diz a professora. E depois acrescenta: –– Para amanhã não há trabalhos de casa. Mas vão todos fazer um bonito desenho ou um poema para agradecer à Flora.
–– Yupiii! –– gritam os meninos. Agora todos querem ser amigos de Flora. Mas ela só tem um amigo: António. Ele acompanha-a todas as semanas à aula de música.
O professor de música deu a António uma linda flauta.
–– Experimenta tocar um bocadinho!
António experimentou e gostou muito do som da flauta. A partir de então, passou a tocar todos os dias.
Muito rapidamente, começou a tocar peças com Flora. Violino e flauta, flauta e violino, é muito divertido e tem uma certa magia…
–– E se vocês fizessem um pequeno concerto na escola? – propõe o professor de música.
–– Boa ideia! –– exclama Flora. –– E depois vamos ao hospital tocar para os meninos doentes. No meu país faz-se isso muitas vezes. A música ajuda a curar e a esquecer as preocupações.
–– Que peças queres tocar, António?
–– Hum… As mais fáceis? Oh, e daí não, as difíceis também! Vou trabalhar todos os dias e fazer muitos progressos!
Os dois preparam então dez peças e, com a ajuda do professor, desenharam um cartaz muito bonito. Toda a escola vem ouvi-los. É um sucesso, um concerto magnífico! À saída, todos os meninos estão decididos a aprender a tocar um instrumento.
E depois?
Ora bem, Flora e António continuaram a tocar juntos.
PARA PRAZER DELES!
Viva a música!



Gerda Muller
Quand Florica prend son violon
Paris, l´école des loisirs, 2001
(Texto adaptado)


 
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Dia Europeu da Internet Segura

O Dia Europeu da Internet Segura é celebrado no dia 9 de Fevereiro.

Neste âmbito o SeguraNet sugere o desenvolvimento de actividades que promovam o uso crítico e seguro do computador e da Internet.

As actividades propostas para esta comemoração decorrerão ao longo de toda a semana - de 8 a 12 de Fevereiro - com principal incidência, no dia 9 de Fevereiro.

No endereço http://www.seguranet.pt/alertas/ encontram-se reunidas várias actividades e aplicativos relacionados com esta temática (guião de actividades, passo-a-passo, os respectivos Alertas e uma apresentação com cada um dos Alertas.
Poderão ser efectuados download's, impressões e/ou visionar a apresentação electrónica, recorrendo ao projector de video.

No espaço da BECRE haverá diversas actividades e recursos para aceder aos conteúdos mencionados.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Campanha de solidariedade a favor das crianças do Haiti



A Câmara Municipal de Castro Marim acaba de lançar uma campanha de solidariedade a favor das crianças do Haiti, denominada Desenhamos por HaiTI – dos meninos (as) do Algarve para os meninos (as) do Haiti, na sequência do terramoto em Port-au-Prince, capital do Haiti, ilha situada nas Caraíbas, no passado dia 12 de Janeiro e que causou milhares de mortos.

Sob o tema "ser solidário", pretende-se que as crianças e jovens do Algarve elaborem uma ilustração, original, em suporte papel cavalinho, folha branca A4. Elaborados os trabalhos, deverá ser pela criança autora promovida a venda junto da comunidade local, não podendo o preço da referida obra ser inferior a 1€.

O valor conseguido com a venda dos vários desenhos será canalizado para uma instituição reconhecida que esteja a operar no terreno em prol das crianças do Haiti, até final do mês de Fevereiro.

A viagem de Djuku

Nem sempre prestamos atenção às pessoas que nos rodeiam e, mais raramente ainda, procuramos saber qual é a sua história – será que nos falta ousadia?
Vinda de muito longe, Djuku é uma dessas pessoas; aqui está um pedaço da sua história.
1
No exacto momento em que parte, Djuku apercebe-se de que é a primeira vez que deixa a sua aldeia.
Desde o seu nascimento até hoje, Djuku viveu sempre rodeada pelos seus na pequena aldeia à beira da savana. Ela conhece cada recanto. E ninguém lhe é ali desconhecido. Do mesmo modo, todos os aldeões sabem quem é Djuku:
–– Djuku? É aquela que sabe assobiar, melhor até do que um pássaro!
–– Quando há por aqui almoço de festa ou de cerimónia, é sempre Djuku quem os faz: ela conhece todas as receitas e até inventa mais!
É verdade que Djuku cozinha galinha como ninguém, mas hoje Djuku vai-se embora. Decidiu partir para longe, muito longe. É que aqui na aldeia, apesar dos amigos, apesar das cerimónias, não há trabalho suficiente.
Fez-se à estrada e fixa os olhos na linha do horizonte para não se voltar, para não chorar. Bem, vamos lá a ver, partir assim é demasiado duro. Então, uma última vez, e antes que a aldeia desapareça na desordem das ervas altas, ela olha-a. Olha-a durante tanto tempo e tão apaixonadamente que todas as coisas onde o seu olhar toca entram no seu corpo.
Agora sim, Djuku pode pôr-se a caminho.
A velha guitarra de Quecuto entra no seu corpo. E com ela todos os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas.
A palmeira inclinada e o embondeiro do largo entram no seu corpo.
O caldeirão de Nhô-Nhô entra no seu corpo.
A casa de Pepito entra no seu corpo, apesar do seu tecto desgrenhado.
A barca e as redes de pesca de Benvindo que repousam sobre a areia entram no seu corpo. Sente que todas estas coisas estão dentro dela firmemente atadas como carga de um navio. Sente que, a cada passo dos muitos que dará, a aldeia estará consigo.
2
Durante a viagem de vários dias, as descobertas sucedem-se e deslumbram Djuku. Pouco a pouco, ela esquecerá a aldeia.
Atravessa imensas planícies acariciadas por ventos amistosos e cruza montanhas azuis onde chega a pensar que morrerá de frio. Incontáveis rios e ribeiras fazem-lhe companhia no seu périplo e, enquanto caminha ao longo das margens, as águas tumultuosas e murmurantes contam-lhe histórias fabulosas.
Muita gente se empurra na berma da estrada para a ver passar. Alguns aconselham-na a fazer meia volta, pois é uma grande loucura. Outros, pelo contrário, encorajam-na, oferecem-lhe pequenas prendas, que ela se apressa a dar por sua vez, mal entra numa nova aldeia.
«Convém ir ligeiro quando se viaja», diz ela de si para si, e logo acrescenta: «Gosto destes dias, gosto destes perfumes novos.»
Pela primeira vez desde há muito tempo, Djuku sente-se extremamente feliz, pondo um pé à frente do outro com uma espécie de bebedeira. Pressente que a sua viagem chegou ao fim quando certa noite viu desenhar-se no horizonte uma barreira sombria de grandes edifícios iluminados aqui e ali por pequenas cintilações.
–– Eis a cidade que eu procurava disse Djuku simplesmente.
Decide que só entrará no dia seguinte.
3
Pela manhã, muito cedo, Djuku entra na cidade quase deserta àquela hora.
Alguém, todo vestido de amarelo, lava as ruas com grande quantidade de água. Um pouco mais adiante, um condutor de autocarro sem passageiros assobia alegremente enquanto faz manobras. Djuku ziguezagueia na calçada com a impressão de que caminha sobre terreno virgem.
Não presta atenção à grande mosca verde barulhenta que engole com uma boca gigantesca os últimos pedaços de noite, até que esta, depois de muito mastigar, se atira a ela. Djuku vacilou e quase caía se antes uma vaga de pessoas, vindas de lado nenhum, não a levasse em uma louca cavalgada. São milhares de homens e de mulheres que se precipitam para os seus locais de trabalho. Viram à direita e à esquerda, sem nexo, embrenham-se nas entranhas da terra para logo saírem mais adiante, sobem e descem escadas, corredores, ruas e depois avançam a golpes de gritos e assobios, de buzinas e apitos ululantes.
–– É uma floresta de gente em marcha! exclama Djuku, que nunca tinha visto tanta gente na sua vida.
Desta vez ninguém lhe oferece presentes, nem lhe pergunta de onde vem.
Djuku deixa-se levar ao sabor da corrente durante toda a manhã, incapaz de resistir, sacudida por uns, empurrada por outros, sem saber para onde ir. Ao meio-dia, quando a corrente diminuiu de intensidade, Djuku, com o corpo extenuado e os pés doridos, consegue escapar-se e vai encalhar um pouco adiante no banco de uma praça.
–– Por pouco não me afogava nesta maré! suspira Djuku massajando os tornozelos. — Ninguém me tinha dito que havia transumâncias.
Lentamente retoma o fôlego e passeia o seu olhar, tentando descobrir onde acabou por cair. É uma pequena praça, tendo ao centro um relvado careca, com um trio de árvores enfezadas e um cão minúsculo que cabriola entre uma e outra para as aspergir. A toda a volta estão casas de fachada rosa--cinza e umas quantas pequenas lojas.
Djuku repara que na montra de cada uma há um anúncio pendurado. Aproxima-se da loja mais próxima e lê: «Procura-se aplicadora de champô em cães mimados. Pede-se C.V.»
–– Isto não é para mim – diz Djuku – nem sei o que é!
A loja seguinte desejava encontrar rapidamente uma «comediante para duas tragédias» e o terceiro anunciava: «Uma profissão brilhante? Torne-se lavadora de azulejos.»
–– É demasiado arriscado. Para mim não serve! – suspira Djuku.
A quarta loja procurava uma «operadora-de-máquina-electricista a meio-tempo para grandes reparações em brinquedos delicados».
–– Oh, isso é muito complicado. Também não é para mim – diz uma Djuku já desolada.
A quinta loja  é um restaurante chamado BARRIGA DA BALEIA, e um cartaz escrito à mão explica: «Boa cozinheira? Entre depressa!»
–– Claro que vou entrar! – exclama logo Djuku – Isto sim, é para mim.
4
Mal Djuku passa a soleira da porta do restaurante, é acolhida por um pequeno homem bonacheirão, o patrão, o senhor Isidoro, que quase logo a aceita como cozinheira.
Quase logo, porque lhe pergunta antes se ela sabe «distinguir o sal da pimenta, é que, sabe, tenho clientes que não são nada fáceis!». E diz-lhe em seguida, mostrando o menu:
–– Bem, está tudo aí, não é complicado e a partir deste momento a chefe da cozinha é você!
–– De resto – corrige-se ele – o chefe do aprovisionamento é você também, e o chefe da condimentação é também você, além, é claro, das idas ao mercado.
Nas semanas que se seguiram, ao ver tantas vezes o senhor Isidoro junto à porta do restaurante, Djuku compreendeu o ar de satisfação dele ao dizer-lhe aquilo tudo. O senhor Isidoro adora fazer a sesta na BARRIGA DA BALEIA.
Djuku aproveitou este cargo para fornecer a cozinha de novos condimentos: coentros, cominhos, funcho, menta, alecrim. E para modificar os pratos, cozinhando ou temperando de maneira diferente as carnes, os legumes, os peixes. Nem toda a gente gostou.
–– Socorro, tenho a garganta a arder – gritava um cliente de vez em quando.
–– Querem envenenar-me, chamem a polícia! – vociferavam outros.
Mas o senhor Isidoro não se deixava convencer, e nada dizia, até porque a maioria dos clientes aprovava a mudança e Djuku conseguia realizar pratos suculentos.
Uma nova vida começava para Djuku na BARRIGA DA BALEIA.
5
Se alguma coisa atraiu a atenção do senhor Isidoro foram as mãos de Djuku. Aliás, ao longo dos vários meses que Djuku passou a trabalhar na BARRIGA DA BALEIA, as coisas resumiam-se a isto: para ele e para os clientes habituais do restaurante, Djuku não era mais que duas mãos, uma esquerda genial, uma direita fabulosa.
Convém saber que, durante o dia, Djuku não aparecia na sala do restaurante, e como ela vinha trabalhar de manhã cedo, só saindo muito depois do fecho, ninguém sabia ao certo quem ela era, como ela era. Só as suas mãos eram conhecidas do «público».
É que era um espectáculo, como dizer, real, ver aquelas mãos elevando um prato através da abertura que separa a cozinha da sala do restaurante. Djuku, numa palavra atirada ao criado de servir, anunciava o prato, mas a sua voz é demasiado doce para ser ouvida. Em palco estavam apenas as suas mãos.
Os clientes que pediam, fosse um qualulu, fosse uma galinha com molho de amendoins, passavam os minutos seguintes de olhos postos na abertura. Não eram poucos aqueles, mais nervosos, que chegavam a roer as unhas.
–– Deviam ter pedido também uma entrada – aconselhava-os sempre o senhor Isidoro.
As mãos de Djuku são as suas ferramentas e o seu tesouro. Não serão o que podemos chamar belas: a palma é larga, os dedos finos de tamanho médio e bem assentes, as unhas compridas tratadas. A pele neste lugar do corpo parece um pergaminho e, no caso dela, é riscado por pequenas cicatrizes (talvez o preço de uma distracção no momento da aprendizagem).
É mesmo a graça dos seus gestos, a agilidade, o que encanta os clientes da BARRIGA DA BALEIA. As mãos dançam ao redor dos pratos até ao momento da entrega. Acontece às vezes descansarem na borda da abertura. Estarão a contemplar, satisfeitas, a vida ruidosa da sala do restaurante? Ou será que esperam alguém ou alguma coisa? É difícil saber. Elas partem sempre de súbito, saltitantes, para se agitarem ao redor dos fogões.
6
–– Uau, este frio gela-me as mãos e o senhor Isidoro que nunca mais vem! Deve estar na cama, tudo lhe serve de pretexto para se lá meter! – constata Djuku divertida ao abrir as portas da BARRIGA DA BALEIA.
Não que precise do seu patrão para pôr em andamento a cozinha, ela já conhece o ritual. De imediato, deita mãos ao trabalho, pois tem muito que fazer. Acende os fornos, tira os alimentos da arca congeladora, e logo os seus dedos se afadigam, descascam legumes, amassam as pastas, preparam os caldos, confeccionam as sobremesas. Durante toda a manhã, Djuku não terá um minuto de descanso, mas assim que, aí pelo meio-dia, chegarem os primeiros clientes, tudo estará pronto. Nestas alturas, a aldeia está em bem longe. Djuku nem sonha.
Ao meio-dia dispara o tiro de partida! Todos os clientes afluem para almoçar. A confusão ameaça. Mas a comandante Djuku está ao leme e a BARRIGA DA BALEIA não aderna e continua a sua rota.
Segue-se a calma da tarde. Djuku conta com um repouso bem merecido. Mas, com cada vez mais frequência, é assaltada por antigas imagens, incómodas como crianças turbulentas mantidas demasiado tempo à mesa e que têm necessidade de esticar as pernas.
«Antes», pensa, «todos sabiam quem era Djuku, agora eu sou uma sombra que passa, que vai para o trabalho de manhã e que regressa à noite. Aqui ninguém me conhece, sou uma sombra sem história.»
Olha à sua volta e o que vê fá-la sorrir: ela imagina a aldeia, a savana, os campos de arroz, o sol quente na sua pequena cozinha!
«Por que raio não será isso possível? Um dia», pensa, «será preciso que o que eu vivi se case com o que eu vivo, que o restaurante fique noivo da aldeia.»
Uma ideia engraçada que a fez, primeiro, rir e, depois, chorar.
7
É noite. O restaurante está fechado. Um a um, todos os clientes se foram. Até o senhor Isidoro já foi para sua casa. Djuku ficou sozinha. Sentada, olha as palmas das mãos, a geografia das rugas da sua pele, talvez procurando um caminho a seguir.
Tudo está calmo na cozinha. Mas Djuku ouve um barulho imenso. Os objectos, acolchoados no interior dela, estão ali, agitados, barulhentos, e querem escapar a qualquer preço.
«O vosso lugar não é aqui», suplica Djuku, «deixem-se estar sossegados.» Eles não queriam ouvir nada e continuaram com a sua terrível algazarra. Então, uma vez mais, Djuku conta a história a si mesma. Em voz alta, invoca a aldeia e as suas gentes, o calor que faz quando o Sol atinge o seu zénite, o odor do carvão de madeira, do peixe que foi posto a secar nos telhados das casas, o da poeira que tudo invade.
Absolutamente decidida, entra no restaurante.
A sua memória, tão viva, apazigua-se a pouco e pouco. Quando tudo parece voltar a estar em ordem, que de novo nela se instalou a paz, Djuku deixa o restaurante e vai para casa descansar.
8
Quando Djuku cozinha, tudo o resto perde importância.
Os clientes na sala bem podem falar alto e grosso, a rádio e a televisão bem podem armar zaragata, que Djuku consagra-se à sua tarefa de tal maneira que só ouve as encomendas do criado de servir. Ela é como uma rainha no seu reino e cada uma das suas coisas, marmitas, panelas, pratos, talheres, especiarias, pratos ou fogões, a protegem da confusão, mantendo-a no centro daquele forte, a cozinha. Nem mesmo o senhor Isidoro pode ali entrar.
Certo dia, contudo, um estranho projéctil atingiu Djuku em cheio: era uma palavra.
Uma palavra que havia escapado da boca do apresentador de televisão. Djuku deixou cair a batata e a faca que segurava nas mãos e deixou-se literalmente invadir. A palavra cresceu nela, ganhou balanço, fez-se furacão, explosão. Acabou por inundá-la, deixando apenas uma casca vazia, desorientada, frágil.
Djuku entrou na sala e dirigiu-se, hipnotizada, para a televisão. Ao vê-la de lágrimas nos olhos, os clientes calaram-se todos, olharam uns para os outros e interrogavam com esse mesmo olhar o senhor Isidoro.
Este, sentado no lugar do costume, perguntou com voz inquieta:
–– Está tudo bem, Djuku?
Ela não respondeu. Assoou o nariz com o punho. Soluçava.
«Deve ter queimado os dedos», pensa um cliente.
–– Minha senhora, a caldeirada estava fa-bu-lo-sa, devorei-a todinha! Veja aqui o meu prato – diz-lhe outro.
–– Mas o que é que se passa hoje? – perguntaram de súbito a uma voz todos os clientes.
Pela primeira vez desde a chegada de Djuku, os clientes da BARRIGA DA BALEIA viram-na e olharam-na verdadeiramente.
A palavra, insignificante para eles, era o nome da aldeia de Djuku.
9
O senhor Isidoro agarrou-a pelos ombros e fê-la sentar-se.
–– Seca as tuas lágrimas, Djuku. Diz-nos o que te aconteceu.
Aconteceu então o seguinte. Djuku, que já havia retomado o fôlego, começou a contar e os objectos que estavam há tanto tempo dentro dela saíram da sua boca para virem, à vez, pontuar o seu discurso: a partida da aldeia, a viagem, a chegada à cidade, e à BARRIGA DE BALEIA, o trabalho e a sua grande solidão. Os clientes e o senhor Isidoro apanhavam os objectos à medida que eles surgiam.
A velha guitarra de Quecuto saiu do seu corpo com os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas, e um cliente apanhou-a para a tocar.
A palmeira inclinada e o embondeiro do lago saíram do seu corpo e um cliente pegou neles e foi pô-los junto à entrada do restaurante.
O caldeirão do Nhô-Nhô saiu do seu corpo e um cliente colocou-o no meio da sala.
A casa de Pepito saiu do seu corpo e os clientes apossaram-se dela para arrumar a sala.
A barca e as redes de pesca de Benvindo saíram do seu corpo e os clientes colocaram-nas à sombra do embondeiro.
Sim, logo em seguida Djuku sentiu-se aliviada e em paz. Viu as coisas que estavam nela firmemente atadas como carga de um navio partilhadas por todos. Percebeu imediatamente que a aldeia tinha desposado o restaurante.
Agora toda a gente conhecia a história de Djuku.
–– Não podemos ficar aqui! – disse alguém.
–– É preciso festejar isto – disse um outro – como na aldeia!


Nota ao leitor
Depois deste famoso dia, a divisória que separava a cozinha da sala do restaurante foi derrubada pelo senhor Isidoro com as suas próprias mãos.
Leitor, se tiveres vontade de ir à BARRIGA DA BALEIA para saborear os melhores pratos que existem, não deixes de trocar dois dedos de conversa com Djuku, agora que ela cozinha no meio de todos. E já agora, por favor, pede-lhe da minha parte notícias da aldeia.

Alain Corbel
A viagem de Djuku
Lisboa, Caminho, 2003
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar