Biblioteca da Escola EB 2/3 Dom Paio Peres Correia - Tavira
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A história dos brincos de penas
Eu, índia Pé-Chato, da tribo dos índios Sempre-em-pé, vou contar-te esta história que se passou comigo, embora não pareça ser verdade.
Bem, é claro que algumas coisas não se passaram exactamente como aqui vão contadas, mas é assim que me lembro delas.
Sei que gostas de histórias, sobretudo à hora de dormir, então aqui vai uma para te fazer sonhar.
É a história de... um par de brincos tão especiais que não há outros iguais no mundo inteiro! Ora presta atenção...
Não vou começar por «Era uma vez», porque já ouviste muitas histórias que começam assim e não gostas de repetições. Cá vai então...
Estava um dia muito luminoso. Era o início da Primavera, estação radiosa na verdejante planície da Águia Tonta.
Todas as coisas criadas por Deus brilhavam de forma especial naquela manhã.
O pequeno índio Pé-de-atleta levantou-se bem cedo como é seu costume — especialmente no tempo quente — e pôs-se a correr pelo vale entre as montanhas cheias de rochedos e árvores tão antigas como o tempo.
Lá foi ele, tropeçando, aqui e ali, em caricas de Coca-Cola e caixas de Chiclets vazias (que o velho Oeste já não é o que era, por causa daquilo a que chamam progresso).
O pequeno índio costuma fazer exercício todas as manhãs, porque o pai, o índio Pé-Grande, lhe disse que só assim ficará alto e forte como ele (convém dizer que o índio Pé-Grande pesa mais de 100 quilos, todo nu, só com o colar de dentes de jacaré ao pescoço).
Ora, a certa altura, Pé-de-atleta parou um pouco para descansar e recuperar o fôlego. Foi então que viu cair, mesmo à frente do seu nariz arrebitado (o único nariz arrebitado da nossa tribo), seis pequenas penas de cores diferentes que, estranhamente, poisaram aos seus pés com toda a suavidade.
Pé-de-atleta baixou-se, recolheu as penas com cuidado para não as estragar e, de novo em pé, pôs-se logo a olhar para o céu…
Nem sombra de ave, qualquer que fosse! Nem condor, nem águia, nem abutre.
O pequeno índio voltou a olhar para as penas que tinha na mão.
Eram bonitas! Seriam mesmo de pássaro como pareciam? Talvez fossem penas de anjo, mas, segundo ouvira o professor Pé-Calçado dizer, as penas de anjo são sempre brancas — mais ainda do que a neve que cobre as montanhas no Inverno —, brancas e muito brilhantes, como se tivessem o Sol lá dentro. Já o vigilante da escola, o índio Pé-Descalço, garantira que os anjos maus tinham penas pretas, mas ninguém ligava muito ao que ele dizia. Na verdade, a sua ambição era ser o curandeiro da tribo, mas tinha ficado desclassificado no concurso por ser tão ignorante que não sabia distinguir uma gota de veneno de serpente cascavel de uma lágrima de crocodilo…
Pé-de-atleta voltou a olhar o céu com toda a atenção como quando seguia o voo de um papagaio de papel que escapara das mãos de um menino da grande cidade, ou quando procurava descobrir uma estrela nova. Porém, nada avistou. Nem ave nem anjo voavam por aquelas bandas naquela manhã.
Intrigado, o nosso amigo guardou as penas e dirigiu-se para a aldeia.
Pela altura do Sol, viu que já eram horas de se apresentar no tipi (nome dado a uma tenda índia) da sua tia Pé-de-meia.
Bem se lembrava de que a tia Pé-de-meia prometera dar-lhe um colar de dentes de urso (já usado) quando ele completasse dez anos de idade, o que acabara de acontecer, na véspera.
Uma promessa é uma promessa! Um índio sabe que deve cumprir o que prometeu.
E Pé-de-atleta lá foi, apressando o passo, de cabelo ao vento, entre voos de insectos coloridos.
A tia Pé-de-meia estava sentada confortavelmente dentro do seu tipi.
Via-se que estava concentrada a coser uma manta muito velha que já tinha dez remendos e cheirava a tantas coisas que atraía coiotes e lobos, mesmo que passassem a
grande distância.
Curioso sobre o seu achado, o pequeno índio resolveu perguntar-lhe se ela sabia a quem teriam pertencido as penas que trazia consigo.
A resposta da tia Pé-de-meia não se fez esperar.
— Ao Tio Patinhas — disse ela, para quem o Tio Patinhas era o pato mais interessante de que ouvira falar. De facto, ele era o ídolo que tanto desejava conhecer, por ser quase tão poupado como ela.
Neste momento, entrou no tipi da tia Pé-de-meia o índio Pé-de-salsa, ajudante do cozinheiro do Chefe da tribo, que vinha trazer uns biscoitos que o cozinheiro Pé-de-porco fizera. Pé-de-salsa ouvira a resposta da tia Pé-de-meia e deu logo a sua opinião: — Toda a gente sabe que as penas do Tio Patinhas são brancas. — Então, pensou um pouco e acrescentou:— Eu digo que são penas de falcão.
Cada vez mais intrigado, o pequeno índio Pé-de-atleta agradeceu à tia o presente que recebera: o colar (muito usado mas ainda com três dentes em bom estado, os restantes estavam cariados ou partidos).
Em seguida, provou um biscoito e despediu-se.
Depois, foi para o seu tipi esperar pela hora da reunião da tribo à volta da fogueira. Nessa altura, segundo esperava, iria satisfazer a sua curiosidade porque algum dos mais velhos haveria de saber dar-lhe uma resposta clara. Os mais velhos sabiam coisas incríveis — até os nomes das estrelas, que eram mais do que todos os antepassados da tribo juntos!
O feiticeiro da tribo estava de férias, numa praia do Brasil. Assim, quando a noite caiu — catrapuz! — sobre a aldeia, o ajudante do feiticeiro, o índio Pé-de-escuteiro, foi buscar lenha e fez a fogueira com todo o rigor, como só ele sabia fazer.
Quando já se via uma bela chama a sair dos ramos, Pé-de-escuteiro abanou a cabeça para cima e para baixo, satisfeito.
A fogueira estava magnífica, digna do índio mais exigente do planeta!
Então, pôs-se a cantar para chamar toda a gente.
Como cantava alto e francamente mal, todos vieram a correr, como sempre, para evitar que caísse sobre a aldeia uma carga de água pesada, acompanhada de raios e trovões. Na realidade, essa calamidade já acontecera porque nem as nuvens suportavam tal cantoria!
Reunidos à volta do fogo, todos começaram por ouvir os mais velhos dizer mal do reumatismo, da tribo Pés-na-terra (grande rival nos jogos e nas lutas) e do seu chefe, o terrível Ponta-Pé.
Em seguida, Pé-Direito, o curandeiro, mergulhou um dedo em mercurocromo e fez dois riscos na cara. Depois, fechou os olhos. Via-se que tinha entrado em grande concentração.
A certa altura, levantou-se e apresentou a sua dança especial para reuniões, ao som de uma cantiga cuja letra só ele sabia, porque lhe tinha sido ensinada pela sua bisavó Pé-Atrás (que pertencia a uma tribo que falava outra língua). De qualquer maneira, segundo parece, tratava-se de uma canção sobre a melhor maneira de fazer uma bebida mágica à base de gengivas de escaravelho, pestanas de lagartixa e unhas de bisonte, com muito piripiri, seiva de cacto e água-pé. Uma bebida para animar os adultos mais tímidos nos serões da tribo.
Depois da dança, fez-se silêncio. Então, o pequeno Pé-de-atleta levantou-se e pediu a palavra para perguntar, mostrando as penas, se alguém sabia de onde teriam vindo. Explicou que não tinha encontrado uma única ave no céu, naquela manhã, o que até podia jurar meia dúzia de vezes, depois de cuspir na mão esquerda e cortar a unha de um dedo do pé, se fosse mesmo necessário.
O primeiro que ali deu a sua opinião foi o índio Pé-de-cabra, que já tinha estado preso por roubar cavalos à tribo vizinha.
Este índio ambicionava entrar num anúncio de televisão a uma marca de cigarros muito famosa, mas, na verdade, não tinha cavalos que o fizessem brilhar como gostaria.
— São penas de faisão — disse Pé-de-cabra, com ares de entendido, atirando a trança para trás das costas, de rompante, fazendo rir a sua mulher, Pé-no-chinelo.
— Qual quê?! — atalhou a índia Pé-de-galinha, que era, juntamente com a sua irmã gémea, a mulher mais velha da tribo e que já via mal (mesmo com a sua inseparável lupa). — Bem se vê que são penas de abutre. — E, em seguida, perguntou à irmã (que tinha vivido em França e era conhecida por Pied-de-poule): — O que é que tu dizes, mana?
A outra mirou e remirou as penas que o pequeno índio lhe foi mostrar e, depois de as aproximar da ponta do nariz, deu uma resposta esclarecedora, na sua voz roufenha:
— Nem mais!
continua…
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
Tautologia
Vocês sabem o que é tautologia?
É o termo usado para definir um dos vícios de linguagem. Consiste na repetição de uma ideia, de maneira viciada, com palavras diferentes, mas com o mesmo sentido.
O exemplo clássico é o famoso 'subir para cima' ou o 'descer para baixo'. Mas há outros, como se pode ver na lista a seguir:
- elo de ligação
- acabamento final
- certeza absoluta
- quantia exacta
- nos dias 8, 9 e 10, inclusive
- juntamente com
- expressamente proibido
- em duas metades iguais
- sintomas indicativos
- há anos atrás
- vereador da cidade
- outra alternativa
- detalhes minuciosos
- a razão é porque
- anexo junto à carta
- de sua livre escolha
- superávit positivo
- todos foram unânimes
- conviver junto
- facto real
- encarar de frente
- multidão de pessoas
- amanhecer o dia
- criação nova
- retornar de novo
- empréstimo temporário
- surpresa inesperada
- escolha opcional
- planear antecipadamente
- abertura inaugural
- continua a permanecer
- a última versão definitiva
- possivelmente poderá ocorrer
- comparecer em pessoa
- gritar bem alto
- propriedade característica
- demasiadamente excessivo
- a seu critério pessoal
- exceder em muito .
Note-se que todas estas repetições são dispensáveis.
Por exemplo, 'surpresa inesperada'. Existe alguma surpresa esperada? É óbvio que não.
Devemos evitar o uso das repetições desnecessárias. Fique atento às expressões que utiliza no seu dia-a-dia.
Verifique se não está caindo nesta armadilha.
Gostou?
Dê a conhecer aos amigos amantes da língua.
domingo, 26 de setembro de 2010
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
A gata e o sábio
O sábio de Bechmezzinn (aldeia situada no norte do Líbano) era muito rico. Dedicava o melhor do seu tempo ao estudo e a tratar os doentes que o procuravam. A sua fortuna permitia-lhe socorrer os infelizes e toda a gente dizia que ele era a dedicação em pessoa.
Homem piedoso e recto, a injustiça revoltava-o. Muitas pessoas vinham consultá-lo quando tinham alguma divergência com vizinhos ou parentes. O sábio dava os melhores conselhos e desempenhava frequentemente o papel de mediador.
Tinha uma gata a quem se dedicava particularmente. Todos os dias, depois da sesta, ela miava para chamar o dono. O sábio acariciava-a e levava-a para o jardim, onde ambos passeavam até ao pôr-do-sol. Ela era a sua única confidente, diziam os criados.
A gata dirigia-se muitas vezes à cozinha, onde era bem recebida. O cozinheiro não escondia nem a carne nem o peixe, porque ela nada roubava, fosse cru ou cozinhado, contentando-se com o que lhe davam.
Ora, uma tarde, depois do passeio diário, a gata roubou furtivamente um pedaço de carne de uma panela. Tendo-a surpreendido, o cozinheiro castigou-a puxando-lhe severamente as orelhas. Vexada, a gata fugiu e não apareceu mais durante todo o serão.
Intrigado, o sábio perguntou por ela na manhã seguinte. O cozinheiro contou-lhe o que se passara. O sábio saiu para o jardim e durante muito tempo chamou a gata, que acabou por aparecer.
— Porque roubaste a carne? — perguntou o sábio.
— O cozinheiro não te dá comida que chegue?
A gata, que tinha parido sem que ninguém soubesse, afastou-se sem responder e voltou seguida de três lindos gatinhos. Depois, fugiu e trepou à figueira do jardim. O sábio pegou nos três gatinhos e entregou-os ao cozinheiro que, ao vê-los, mostrou uma grande admiração.
— A gata não roubou comida a pensar nela. — declarou o sábio. — O seu gesto foi ditado pela necessidade. Portanto, não é de condenar. Para alimentar os filhos, qualquer ser, mesmo mais frágil do que um mosquito, roubaria um pedaço de carne nas barbas de um leão. A gata limitou-se a seguir o que lhe ditava o seu amor maternal. A conduta dela nada tem de repreensível. O pobre animal está a sofrer por a teres castigado injustamente. Fugiu para a figueira porque está zangada contigo. Deves ir lá pedir-lhe desculpa, para que se acalme e tudo volte ao normal.
O cozinheiro concordou. Tirou o turbante, dirigiu-se à figueira e pediu perdão ao animal. Mas a gata virou a cabeça. O sábio teve de intervir. Conversou longamente com ela e lá conseguiu convencê-la a descer da árvore.
A gata desceu lentamente da figueira, veio a miar roçar-se nas pernas do sábio e foi para junto dos seus três filhotes.
Tradução e adaptação
Jean Muzi
16 Contes du monde arabe
Paris, Castor Poche-Flamarion, 1998
adaptado
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
1 de Outubro - Dia Nacional da Água
Acção de sensibilização e exposição subordinada ao tema
Ciclo Urbano da Água e o seu Uso Eficiente
Actividade realizada em parceria com o projecto Eco-Escolas e a Divisão de Ambiente e Energia da Câmara Municipal de Tavira.
Bom Ano Lectivo 2010/2011!
A Equipa da Biblioteca Escolar deseja a toda a comunidade escolar um excelente ano lectivo!
A Profª Bibliotecária: Fátima Veríssimo
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Escuta as vozes da terra
Durante a infância, o meu avô era o meu melhor amigo. Quando estávamos juntos, tudo me parecia perfeito.
Gostávamos ambos de passear pelos bosques. Nunca íamos muito longe, nem andávamos muito depressa. Escolhíamos caminhos sinuosos. Enquanto caminhávamos, eu fazia imensas perguntas:
― Avô, porque é…?
― O que se passaria se…?
― Será que às vezes…?
Um dia, perguntei:
― Avô, o que é uma oração?
O meu avô ficou em silêncio durante muito tempo. Quando chegámos junto das árvores mais altas da floresta, respondeu-me com uma pergunta:
― Alguma vez ouviste o murmúrio das árvores?
Pus-me à escuta, atento, mas foi em vão.
― Vê como as árvores sobem até ao céu. Tentam subir sempre mais. Querem chegar às nuvens, ao sol, à lua e às estrelas. Procuram elevar-se até ao céu.
Pensei nas árvores, procurei ouvi-las. Enquanto reflectia, sentei-me numa rocha velha, coberta de musgo. O meu avô explicou:
― As rochas e as montanhas também falam connosco. A sua calma e o seu silêncio inspiram-nos tranquilidade.
Depois de ter reflectido durante bastante tempo, peguei numa pedra e coloquei-a no meu bolso. Caminhámos um pouco mais, até junto de um ribeiro. A água borbulhava, cintilava, e viam-se pequenos peixes a nadar.
― Avô, os ribeiros também murmuram?
― Claro. Bem como todos os lagos, rios e cursos de água. Às vezes, correm tranquilamente. Espelham as nuvens, os pássaros, o sol ou as estrelas. Outras vezes, escoam-se em redemoinhos, lançam-se no mar ou evaporam-se no céu. E o ciclo recomeça… Também se riem e divertem com os seus amigos rochedos. Dançam, saltam, tornam a cair…Mas a natureza conhece outras formas de se exprimir. As ervas altas procuram o sol e as flores exalam o seu perfume doce. Quanto ao vento, sussurra, geme, suspira, e sopra-nos as suas palavras. Escuta o canto dos pássaros de manhã cedo, escuta o seu silêncio antes do nascer do sol. Consegues ouvir a melodia do pintarroxo ao cair da tarde? Os animais correm pela floresta, tornam-se reluzentes com a água, escalam montanhas, voam até às nuvens, ou refugiam-se na terra. É assim que todos os seres vivos participam na b eleza do mundo…
Calámo-nos os dois. O meu avô olhava o horizonte e eu reflectia no que ele me tinha dito sobre as rochas, as árvores, a erva, os pássaros e as flores. Acabei por lhe perguntar de que modo rezavam os homens. O meu avô sorriu e passou-me a mão pelos cabelos. Respondeu:
― Tal como a natureza, os homens têm a sua linguagem própria. Podem inclinar-se para cheirar uma flor, ver o sol despontar no horizonte, sentir a terra mover-se docemente, ou saudar o dia que começa. Pode-se passear num bosque coberto de neve num dia de Inverno e ver o próprio sopro confundir-se com o sopro do mundo. A música e a pintura são também formas de expressão, de linguagem…. Às vezes, sentimo-nos tristes, doentes ou isolados. Então, repetimos as palavras que os nossos pais e avós nos legaram. Mas é preciso que cada um encontre as suas próprias palavras. O que é importante é dizer o que verdadeiramente se sente, o que nos vem do coração.
Passado algum tempo, o meu avô disse que eram horas de regressar. Mas eu tinha uma última pergunta:
― Será que há respostas para as nossas orações?
Sorriu.
― Se as escutarmos atentamente, as orações contêm as suas próprias respostas. Nós somos como as árvores, o vento e a água. Não podemos mudar o que nos rodeia, mas podemos mudar-nos a nós mesmos. É evoluindo que transformamos o mundo.
Depois deste passeio, ainda voltámos a passear juntos. De cada vez, tentei escutar as vozes da terra, mas creio que nunca as ouvi. Um dia, o meu avô deixou-nos. Continuei a pensar nele com todas as minhas forças, mas ele não voltou. Não podia voltar. Rezei até mais não poder. Depois, deixei de o fazer. Sem ele, tudo me parecia sombrio. Sentia-me muito só.
Alguns anos mais tarde, durante um passeio, sentei-me debaixo de uma árvore enorme. Os ramos mexiam e as folhas sussurravam. Ouvi o murmúrio de um ribeiro e o canto de um pintarroxo, pendurado numa madressilva. Ouvi também um ligeiro sussurro, misturado com o sopro do vento, com o canto dos pássaros e com o marulho da água.
Tal como o meu avô me ensinara, a terra falava comigo. Então, também eu murmurei, docemente:
― Obrigado pelas árvores grandes e pelas flores, pelos rochedos e pelos pássaros. E, sobretudo… obrigado pelo meu avô!
Foi então que algo aconteceu.
Senti – outra vez – o meu avô perto de mim…
E, pela primeira vez desde há muito tempo, tudo me parecia perfeito.
Douglas Wood
Grandad’s Prayers of the Earth
Paris, Gründ, 2000
(Tradução e adaptação)
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
A história de Glória, a vaca
A história de Glória, a vaca
Já em criança a vaca Glória era mais gorda do que as outras vacas. E isto foi-se acentuando à medida que crescia. Os lábios eram carnudos, o nariz largo, a cabeça tão grande como uma abóbora (por acaso era até maior) e, ainda por cima, tinha umas pernas fortes, uma barriga gorda, pêlos grossos e duros e os pés pesados.
Como não havia roupas à venda para o seu tamanho, tinha de ser ela mesma a fazê-las à mão. Fazia-as sem gosto nem grande jeito, e por isso, dentro daqueles vestidos, parecia ainda mais possante do que realmente era.
Tinha um andar atabalhoado e, quando falava, a voz era semelhante à de alguém a gritar para dentro de uma cisterna.
Glória não era modesta nem pensava tornar-se uma boa vaca leiteira como todas as vacas da sua idade. Não! Era ambiciosa e ansiava por qualquer coisa de grandioso!
Um engraçadinho qualquer, creio que a raposa, dissera-lhe que com uma voz tão bonita, devia estudar canto. Como tinha um pai rico que pagava tudo, teve aulas de música e, em seguida, deu ainda um concerto.
Todas as vacas vieram ouvir Glória cantar. Começou com A violeta na orla do caminho e esta foi também a última canção que cantou. É que, se quando falava a voz parecia que saía de uma cisterna, ao cantar, soava como dois elefantes a trombetear num regador em simultâneo com uma serra a cortar metal. A assistência tapava os ouvidos, assobiava, gritava e batia com os pés para não ter de ouvir aquela voz horrível, ou então corria em debandada pelo prado onde o concerto estava a decorrer.
Glória parou e começou a chorar.
As vacas pensaram: "É agora que ela se vai tornar uma boa vaca-leiteira!"
Mas não! Teve aulas de dança e ainda quis tentar a sorte como bailarina!
Quando se apresentou pela primeira vez, vieram ainda mais vacas vê-la dançar do que quando cantou.
Glória apareceu no palco com uma saia tão grande que dava à vontade para fazer sete toalhas de mesa. Logo ao primeiro passo, tropeçou e caiu. As vacas na assistência riram-se, mas Glória não se deixou intimidar e deu um salto. Com o peso, as tábuas do palco partiram e ela caiu, ficando presa até à altura dos braços. Os espectadores riram-se, mas cinco fortes bois subiram ao palco e ajudaram-na a sair do buraco, onde ainda continuava a dançar. Novamente em cima do palco, Glória começou a dançar perigosamente perto da boca de cena. Desequilibrou-se e caiu, aterrando exactamente em cima dos músicos que estavam a tocar no fosso da orquestra
Quando voltou a erguer-se, com dificuldade, o contra-baixo estava partido, a trompete completamente espalmada, o tambor rebentado, o acordeão rasgado em dois e o maestro, com o susto, tinha engolido a batuta. Bem se pode imaginar as gargalhadas da assistência quando a bailarina desapareceu por detrás das cortinas.
Em consequência disto, Glória, muito envergonhada, emigrou para o país dos hipopótamos. Aí dançou para os pesados e grosseiros animais, e cantou ainda algumas das suas canções.
No dia seguinte lia-se no jornal:
A artista Glória, uma figurinha delicada e frágil, deu ontem um concerto onde também dançou. Nunca tinha sido possível no nosso país admirar uma voz tão clara e cristalina; nunca se tinha ouvido um canto tão belo. Dançou, melhor dizendo, flutuou com tal graciosidade que todas as nossas meninas-hipopótamos ficaram encantadas pela sua leveza. Esperemos que a artista Glória dance e cante mais vezes aqui entre nós, no país dos hipopótamos.
Paul Maar
Reinhard Michael (org)
Wo Fuchs und Hase sich Gute Nacht sagen
Hochstadt, Gerstenberg Verlag, 2002
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
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