quarta-feira, 10 de junho de 2009

A Criança Misteriosa (cont)

… continuação
– Viva, viva! O Príncipe Faisão deu bicadas em Master Inkspot até morrer!
– Oh, mãe! – choramingou Christlieb. – Oh, Master Inkspot não é na realidade Master Inkspot. Ele é Pepser, o Rei dos Duendes. Ele é uma mosca grande e horrível, usa cabeleira postiça e calça sapatos e meias!
Os pais iam ficando cada vez mais espantados com aquilo que as crianças lhes contavam sobre a história da mãe da criança misteriosa, que era a rainha das fadas, sobre Pepser o Rei dos Duendes, e sobre o Príncipe Faisão.
– Quem vos terá contado tamanho disparate? Ou será que sonharam? – perguntou Sir Thaddeus. Mas depois ficou muito sério e pensativo.
– Félix! Félix! – disse por fim. –Tu és um rapaz sensato e também posso dizer-te que, desde o princípio, achei este tutor uma pessoa esquisita: A tua mãe também não gosta dele. Diz que é muito guloso, sempre à volta de coisas doces, sempre a resmungar e a praguejar de uma forma muito desagradável. Portanto, não ficará por muito mais tempo connosco. Mas, meu rapaz, suponhamos que realmente existem coisas como duendes: mesmo assim, poderia um tutor ser uma mosca?
Félix olhou fixamente para Sir Thaddeus e disse:
– Nunca tinha pensado nisso, pai, e atrevo-me a dizer que eu próprio nunca o suporia se a criança misteriosa não mo tivesse contado – e se eu não o tivesse visto com os meus próprios olhos. Mas agora sei que Pepser é uma mosca nojenta e fingia apenas ser o tutor Inkspot! Acho que uma pessoa não pode mudar a sua natureza! E pensa ainda como ele é guloso. Sempre atrás de coisas doces, tal como diz a mãe! Não é exactamente como uma mosca? E o seu praguejar e zumbir constante?
– Silêncio! – disse Sir Thaddeus de Brakel, quase zangado. – O que quer que seja Master Inkspot, uma coisa é certa: nenhum Príncipe Faisão lhe deu bicadas até à morte, pois aí vem ele, a chegar da floresta!
Nesse mesmo instante, as crianças gritaram e correram para dentro, à procura de segurança. Era mais do que certo que Master Inkspot regressava da floresta. Vinha com um olhar muito zangado, com os olhos a brilharem imenso e a peruca mal posta. Zumbia e praguejava, cambaleando pelo caminho e sempre a bater com a cabeça nas árvores. Chegou à porta de casa e atirou-se avidamente à tigela do leite. Esta entornou-se e ele sugou o leite, fazendo um barulho horrível.
– Santo Deus, Master Inkspot! – disse a mulher de Sir Thaddeus de Brakel. – O que está a fazer?
– Está louco, senhor? – perguntou Sir Thaddeus. – Vem o Diabo atrás de si, ou quê?
Sem lhe dar importância, o tutor bebeu o leite todo e atirou-se ao pão e à manteiga, afastando as abas do casaco das suas magras pernas. Depois, resmungando mais alto do que nunca, atirou-se contra a porta, mas não conseguiu entrar em casa. Cambaleava como se estivesse bêbedo, indo contra os vidros das janelas, fazendo-os estalar.
– Então, então! – exclamou Sir Thaddeus. – Isso não é maneira de se comportar! Arrepender-se-á por isto! Espere e verá!
Tentou apanhar o tutor pelas pontas do casaco, mas ele fugiu. Depois, Félix saiu a correr de casa com um grande mata-moscas e entregou-o ao pai.
– Pega, pai! – gritou. – Pega nisto e mata aquele horrível Pepser!
E foi o que Sir Thaddeus tentou fazer, indo atrás do tutor! Félix, Christlieb e a mãe abanavam panos, fazendo o tutor andar às voltas, enquanto Sir Thaddeus tentava acertar-lhe. Infelizmente todos falharam, uma vez que Master Inkspot, zumbindo de uma forma selvagem, não ficou quieto um único momento.
Finalmente, Sir Thaddeus conseguiu agarrar o tutor pelas abas do seu casaco, e ele caiu resmungando. Quando Sir Thaddeus estava quase a bater-lhe pela segunda vez, ele levantou-se, mais forte do que nunca, e fugiu para a floresta, a zumbir e a resmungar. E nunca mais foi visto.
– Estamos todos livres daquele desagradável Master Inkspot! – disse Sir Thaddeus. – Jamais voltará a nossa casa!
– Estou certa que não! – concordou a mulher. – Um tutor com maneiras tão rudes, tão fanfarrão em relação aos seus conhecimentos, e a saltar para dentro de uma tigela de leite... Que lindo tutor, devo dizer!
Félix e Christlieb gritaram de alegria.
– Hurra! O pai atingiu o Master Inkspot com o mata-moscas e agora ele foi embora de vez! – Hurra, hurra!
Todos pareciam estar bem, mas, apesar das crianças esperarem voltar a ver a criança misteriosa, esta não voltou a aparecer. E, quando iam para a floresta, esta parecia estar assombrada pelos brinquedos estragados que tinham deitado fora. Todos aqueles brinquedos eram criaturas e servos do Duende Pepser (ou Master Inkspot, o tutor), que ainda se ouvia zumbir pela floresta. Félix e Christlieb desistiram de passear, e o pai, Sir Thaddeus, não se sentia bem.
– Não sei o que se passa – disse ele um dia à mulher – mas quase me atrevo a dizer que foi o maldito Master Inkspot a causa de tudo isto. A partir do momento em que o atingi com o mata-moscas e o afugentei, os meus braços ficaram pesados como chumbo.
Na verdade, Sir Thaddeus de Brakel andava cada vez mais pálido e cansado. Já não ia trabalhar para o campo como costumava fazer. Sentava-se durante horas, perdido nos seus pensamentos, e depois pedia a Félix e Christlieb que lhe contassem tudo o que sabiam sobre a criança misteriosa. Eles falavam com entusiasmo, e ele sorria melancólico, enquanto os olhos se lhe enchiam lágrimas.
Félix e Christlieb estavam tristes por nunca mais verem a criança misteriosa, e tinham medo de entrar na floresta por causa dos bonecos sinistros. O pai apercebeu-se disso.
– Venham, vamos todos juntos à floresta, e as criaturas diabólicas de Master Inkspot não lhes farão mal! – disse-lhes, numa bela manhã. Levou as crianças pela mão e entraram na floresta. Estava mais bela do que nunca, com um cheiro doce, o chilrear dos pássaros e um lindo sol. Sentaram-se na relva, por entre flores perfumadas.
– Queridos filhos – disse Sir Thaddeus – devo dizer-vos agora, uma vez que o não posso esconder por muito mais tempo, que eu próprio sabia que uma estranha e maravilhosa criança vos mostrava coisas espantosas aqui na floresta. Quando tinha a vossa idade, essa criança também me apareceu e passámos bons momentos juntos. Não me lembro como foi que ela me deixou, nem tão-pouco como não me lembrei dela quando vocês me contaram a história e eu não acreditei. Contudo, sempre tive a sensação de que falavam a verdade. Mas agora tenho recordado aqueles dias felizes da minha infância e aquela querida e misteriosa criança. Sinto um aperto no peito que, decerto, destruirá o meu coração! Pressinto que é a última vez que me sento debaixo destas árvores. Queridos filhos, em breve vos deixarei. Quando eu morrer, recordem sempre a criança misteriosa!
Félix e Christlieb ficaram assustados. Soluçavam e choravam:
– Oh não, pai, tu não vais morrer! Vais ficar connosco por muito, muito tempo, e também brincarás com a criança misteriosa!
Contudo, no dia seguinte, Sir Thaddeus ficou na cama doente, e um homem alto e magro veio tirar-lhe as pulsações e dizer que tudo iria ficar bem. Mas, ao terceiro dia, Sir Thaddeus estava morto, e a mulher e os filhos choravam-no.
Não muito depois, quando ele foi enterrado, dois homens horríveis, parecidos com Master Inkspot, bateram à porta e disseram à mulher de Sir Thaddeus que iriam tomar posse da propriedade. O Conde Cyprian emprestara ao seu primo afastado mais do que a propriedade valia e queria o seu dinheiro de volta. Assim, a pobre mulher, agora sem nada, teve de deixar a bonita propriedade de Brakelheim. Decidiu ir para casa de uns parentes que não viviam muito longe. Os três embrulharam as poucas roupas com que lhes permitiram ficar, e deixaram a casa, banhados em lágrimas.
Quando caminhavam há algum tempo na floresta, ouviram o murmúrio do ribeiro, que em breve teriam de atravessar. Subitamente, a pobre mãe das crianças caiu sob o peso amargo das suas mágoas. Félix e Christlieb ajoelharam-se, a chorar.
– Oh, que pobres crianças somos! Será que ninguém tem pena de nós?
Ao longe, o murmúrio do rio transformou-se numa agradável melodia, os arbustos abanaram com um misterioso ruído e, em breve, toda a floresta estava banhada por uma luz cintilante. A criança misteriosa saiu das folhas perfumadas, rodeada por uma luz tão brilhante que as crianças tiveram de fechar os olhos. Depois, sentiram um toque suave e ouviram a sua voz dizer:
– Não se aflijam, queridos amigos! Acham que já não gosto de vocês ou que vos deixarei? Podem não me ver com os vossos olhos, mas estarei sempre convosco e farei tudo para vos tornar felizes. Mantenham-me no vosso coração, tal como têm feito até agora, e nem o maquiavélico Pepser nem outro inimigo poderão magoar--vos! Gostem sempre de mim e gostem profundamente!
– Assim faremos, assim faremos! – disseram Félix e Christlieb. – Nós amamos-te do fundo do nosso coração!
Quando puderam voltar a abrir os olhos, a criança misteriosa tinha desaparecido, mas deixara todo o seu aroma e alegria dentro deles. Devagar, a mãe levantou-se.
– Oh, queridos filhos! – disse.– Sonhei convosco! Pareceu-me ver-vos em frente de uma luz dourada e cintilante, o que me reconfortou profundamente!
Havia alegria no olhar das crianças e as suas faces estavam rosadas. Elas disseram à mãe como a criança misteriosa ali aparecera para os reconfortar, e ela disse:
– Não sei porquê, mas hoje acredito na vossa história. Não sei como ela consegue aliviar a minha dor, mas de facto assim é! Vamos ter coragem e continuar.
A sua parente recebeu-os muito amavelmente, e tudo se passou como a criança misteriosa prometera! Tudo o que Félix e Christlieb faziam corria tão bem, que a mãe se enchia de felicidade.
Continuaram a brincar em sonhos com a criança misteriosa, e esta nunca deixou de partilhar com eles as coisas extraordinárias da sua terra.
FIM
E.T.A. Hoffmann
A criança misteriosa
Porto, Edinter, 1991
texto adaptado


O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar


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