sábado, 27 de junho de 2009

O homem que tinha uma árvore na cabeça - 2ª parte

O homem que tinha uma árvore na cabeça
… continuação
Distraído como era, não reparou certa vez que o tronco da árvore que tinha escolhido era um corpo de homem e que esse homem era Arbóreo. Por isso, foi com enorme surpresa que ouviu sair do meio dos ramos e das folhas largas uma voz que dizia:
– Não se assuste que eu não sou uma árvore igual às outras. Sou um homem-árvore.
Kepler imaginou que alguém lhe estava a pregar uma partida. Mas quem seria, se em Praga praticamente não conhecia ninguém?
– Vamos deixar-nos de brincadeiras – sugeriu ele – que eu estou com pouca disposição para entrar nelas.
– Não se trata de uma brincadeira – esclareceu Arbóreo. – Eu tenho uma árvore na cabeça e talvez o senhor, que tem ar de ser pessoa de ciência, me possa ajudar a decifrar este mistério.
Kepler olhou com atenção e verificou que não se tratava, na realidade, de uma partida. Era mesmo um homem com uma árvore na cabeça. E era uma árvore de ramos grossos e compridos, com bonitas folhas de um verde acastanhado. Como se poderia explicar um fenómeno tão estranho?
– Gostava de o ajudar – respondeu Kepler – mas confesso que nunca os meus olhos observaram um caso assim. Nem disponho de meios nem de conhecimentos para encontrar uma resposta que o satisfaça, até porque sou um homem de ciência e aos homens de ciência só as respostas bem fundamentadas podem servir.
– Mas eu – lamentou-se Arbóreo – vivo numa grande infelicidade. Quando a árvore começou a crescer não dei grande importância ao caso. Pensei até que ser diferente, numa cidade como esta, me podia trazer vantagens de vária ordem. Mas depois vi que me tinha enganado. Comecei a dar nas vistas e a tornar-me suspeito. Hoje não tenho casa onde possa morar e os meus únicos amigos são os pássaros, algumas crianças e as estrelas que iluminam a noite imensa.
Ao ouvir da boca de Arbóreo a palavra "estrelas", Kepler sentiu que o coração lhe batia mais depressa dentro do peito. Era para ele uma palavra mágica, carregada de sentidos. Sendo ele astrónomo, ou seja um cientista dos astros e dos grandes mistérios do Universo, um homem deslumbrado com o brilho pálido das galáxias perdidas na noite, não podia ficar indiferente àquela palavra.
– És amigo das estrelas? – perguntou.
– Claro que sou – respondeu Arbóreo com convicção – e tanto assim é que, quando me sinto mais sozinho e desconsolado, são elas que vêm dar-me novo ânimo e apontar-me novos caminhos.
– Isso quer dizer – concluiu Kepler – que temos em comum a paixão pelas estrelas e, se calhar, também pelos planetas.
– Também pelos planetas – confirmou Arbóreo.
– Sendo assim – adiantou o astrónomo – talvez eu possa ajudar-te, ou pelo menos, tentar ajudar-te com o pouco que sei.
O diálogo tornara-se de tal maneira cordial que, sem darem por isso, tinham começado a tratar-se por tu, que é o tratamento familiar que os amigos dão uns aos outros. Tinham-se, portanto, tornado amigos.
Nessa noite, num recanto abrigado do jardim, Arbóreo dormiu descansado e sonhou com estrelas, com muitas estrelas, e com um amigo que cavalgava pelo meio delas à garupa de um cometa extraordinariamente veloz. O amigo era Kepler.
Por sua vez, Kepler tinha um outro amigo. Era um homem rico, solitário e estranho. Era dinamarquês e vivia exilado na corte do imperado católico Rudolfo II. Chamava-se Tycho Brahe e estava mais avançando que Kepler no estudo dos segredos mais secretos do Universo.
Quando voltou a encontrar-se com Arbóreo, Kepler contou-lhe:
– Escrevi ao meu amigo Tycho e expliquei-lhe o teu caso. Se somos capazes de decifrar mistérios dos planetas e das estrelas, também havemos de descobrir por que razão pode um homem viver com uma árvore na cabeça.
Arbóreo, que não estava interessado em que a fama do seu estranho caso desse a volta ao mundo, perguntou-lhe quem era esse tal Tycho. E Kepler explicou-lhe:
– É um cientista. Um cientista como eu… bem, como eu não, porque tem um nariz de ouro.
– Um nariz de ouro! – exclamou o homem-árvore.
– Sim, um nariz de ouro. Explico-te porquê. Ele, quando era jovem, era brigão e atrevido e, num duelo que travou, o adversário, com um golpe certeiro, arrancou-lhe o nariz. Imaginas o que é viver sem nariz? Aí ele, como era muito rico, decidiu arranjar um nariz postiço e mandou que o fizessem em ouro. É um sinal da sua grande fortuna e da sua diferença em relação aos outros homens.
– Que duelo mais estúpido! – comentou Arbóreo, indignado.
– E queres saber qual a causa do duelo? É que disputavam ambos o título de melhor matemático do reino.
– Mas então ele é astrónomo ou matemático?
– É matemático, como eu, porque o estudo dos astros ainda não é considerado como uma ciência e sim como a soma de conhecimentos de uns adivinhos que lêem no céu o destino dos outros. E não há nada mais errado do que isso. A astronomia é uma ciência e é assim que a queremos ver tratada.
Kepler não chegou a receber de Tycho Brahe uma resposta satisfatória sobre o caso de Arbóreo porque, entretanto, Tycho adoeceu gravemente, morrendo ao fim de poucas semanas. Sofria de uma infecção grave e não seguiu os conselhos dos médicos.
Kepler sentiu muito a sua perda, que só foi aliviada por ter recebido em herança os cadernos com as notas das suas invenções de mais de trinta anos e os instrumentos ópticos com que observava os planetas e os astros.
Foi com base nessas notas, conforme explicou a Arbóreo, que Kepler, à custa de muito estudo e de muitas noites sem dormir, estabeleceu as leis do movimento planetário, que viriam a tornar o seu nome famoso na história da ciência.
Ao mesmo tempo que os ramos lhe cresciam na cabeça, arqueando-se e caindo em volta do seu corpo, vergados ao peso dos frutos, das folhas e dos pássaros que neles procuravam abrigo, Arbóreo percebia que as ideias de Kepler também não paravam de crescer e de se iluminar, como se tivessem luz própria.
O astrónomo fez dele seu confidente, porque, sabendo-o amigo das estrelas, podia confiar nele e revelar-lhe muitos dos seus projectos e segredos.
Foi assim que ficou a saber que Kepler se preparava para publicar um livro chamado «As Harmonias do Mundo», no qual dava explicações novas para muitas das coisas que aconteciam no Universo. Tinha uma especial predilecção pela palavra «harmonia», porque era dela que dependiam, segundo dizia, a beleza e a ordem de todo o movimento planetário. E pensava outras coisas bonitas.
– O Universo – disse um dia a Arbóreo – é uma sinfonia de vozes e a cada planeta corresponde uma nota de música. Para a Terra há duas notas, o Fá e o Mi, que se repetem eternamente, até ao fim dos tempos.
Ao escutar estas palavras, Arbóreo murmurou baixinho:
– Quem diz coisas assim tão belas só pode ser um poeta.
E nunca chegou verdadeiramente a perceber que, afinal, os astrónomos também são poetas, poetas da luz e da sombra, do brilho e da noite.
*
Quando Kepler concluiu a investigação que o conduziu à descoberta da terceira lei do movimento planetário, quase não teve tempo para festejar o acontecimento, porque, passados poucos dias, deu-se em Praga o incidente que originou a terrível Guerra dos Trinta Anos.
Tanto Kepler como Arbóreo odiavam a guerra, porque sabiam que ela não costuma poupar nem vidas nem ideias, que semeia o terror e a destruição, que só espalha fome, doença e desamparo. Ambos viriam a morrer em consequência desse conflito e estavam condenados a sofrer bastante antes que o fim chegasse.
O rei que protegia Kepler e apoiava o seu trabalho científico foi deposto e assim o astrónomo teve de se exilar, como já acontecera a muitos outros cientistas do seu tempo. Aqueles que passaram a governar Praga nesses dias exigiram-lhe que aceitasse a sua doutrina e, como Kepler tivesse recusado, ordenaram-lhe que partisse.
Ele hesitou bastante antes de o fazer. Tinha a mulher e o filho doentes, atingidos por uma epidemia espalhada pelos soldados, que já matara muitos milhares de pessoas, e recebera a notícia de que sua mãe, Catarina Kepler, fora presa sob a acusação de praticar bruxaria. «A minha mãe não é bruxa, não pode ser verdade», pensou, mordendo os lábios de revolta.
Foi nesse estado de desânimo que procurou Arbóreo para desabafar.
– Que hei-de eu fazer, meu amigo? Tudo escurece à minha volta como se tivesse chegado a noite do mundo e nunca mais voltasse a haver dia.
– É preciso que tenhas confiança e não percas a calma. Melhores dias hão-de chegar, podes estar certo.
– Onde descobriste tu isso? – perguntou Kepler com uma ironia amarga. – Não me digas que o leste nos astros!
– Não – respondeu Arbóreo, com firmeza – aprendi-o contigo.
– A epidemia está prestes a roubar-me aqueles que mais amo, minha mãe pode ser levada à fogueira. É terrível quando os homens usam o ferro e o fogo para imporem as suas razões. Que vai ser de mim?
– Que vai ser de nós? Também a mim já me procuraram, ameaçando-me com a prisão se não explicar o mistério da árvore que tenho na cabeça. Por isso, como vês, também eu não vivo melhores dias.
Olhando em toda a volta para ver se estava em segurança, Kepler tirou um livro que trazia escondido debaixo da roupa e entregou-o a Arbóreo.
– Guarda-o, por favor, no meio dos teus ramos, e não o dês a ninguém. Se te perguntarem como foi aí parar, diz-lhes que foi uma estrela quem to ofereceu.
continua…
O Clube de Contadores de Histórias
Biblioteca da Escola Secundária Daniel Faria – Baltar

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