sábado, 28 de junho de 2008

A raposa


Era uma vez um pescador que ia apanhar lenha pela costa do mar, e encontrou um tubarão metido numa rede. O tubarão, mal o viu, disse-lhe:
— Ó bicho-homem, tiras-me desta rede?
O homem teve pena do tubarão e tirou-o da rede. Mas o tubarão, que havia uns poucos de dias que estava preso na rede, tinha fome e botou-se ao homem para o comer. O homem disse-lhe, muito aflito:
— Ó tubarão, então eu tirei-te da rede e tu agora queres comer-me?
O tubarão respondeu-lhe:
— Como, porque tenho fome.
O homem disse-lhe:
— Pois não me comas sem primeiro tomarmos três conselhos, dos três primeiros fôlegos vivos que encontrarmos. Se todos tiverem a mesma opinião, está o juramento aprovado. E se um disser uma coisa e dois outra, a maioria é que vence.
Mas o tubarão não queria largar o homem, e não largou, mas sempre com ele agarrado.
Chegaram à areia de terra e avistaram um burro velho, e perguntaram-lhe:
— Ó burro, por bem fazer, mal haver?
Responde o burro:
— Sempre foi e há-de ser.
Perguntou o homem:
— Porque dizes tu isso?
— Porque eu quando era burro novo, meu amo até numa rede me trazia por via das moscas; quando ele ia a cavalo, eu ia todo contente a saltar. Hoje que me acho burro velho, botou-me à margem. Pagou-me o bem com o mal.
Diz o tubarão:
— Vês, homem, o primeiro já está a meu favor.
Daí a bocado, passa um galgo também velho. Diz o homem:
— Ó galgo, por bem fazer, mal haver?
O galgo respondeu:
— Sempre foi e há-de ser.
Diz o homem:
— Porque dizes tu isso?
— Porque quando eu era galgo novo, meu amo ia para o monte à caça, e eu corria aquela toda sobre a caça. Tinha-me o meu amo tanto amor, que não me dava por dinheiro nenhum. Agora estou cansado e velho, e meu amo, para me não matar, botou-me para o monte, cheio de pancada, e aqui está como ele me pagou o bem com o mal.

O tubarão abriu a boca para comer o homem. O homem disse:
— Alto lá, que ainda falta um.
Nisto, aparece uma raposa. Diz o homem:
— Ó comadre raposa, por bem fazer, mal haver?
Diz a raposa:
— Não, que eu não posso lavrar a sentença sem ver o crime.
Responde o homem:
— Então como é que se há-de agora formar o crime?
Responde a raposa:
— Torne o tubarão para a rede.
O tubarão, isso não queria, mas não teve remédio e sempre foi. O homem, mal o viu lá, ainda o segurou mais do que ele estava.
A raposa então disse:
— Agora salte o homem cá para terra.
A raposa voltou-se para o tubarão e disse-lhe:
Por bem fazer, mal haver,
Sempre foi e há-de ser;
Quem quiser fugir que fuja,
Que eu assim vou fazer.
Depois, o homem fugiu para um lado, a raposa para outro, e o tubarão ficou preso dentro da rede.
Depois a raposa foi pôr-se adiante num caminho a fingir-se morta.
O pobre homem, que andava apanhando a lenha, encontrou a raposa e disse:
— Ah! coitadinha, pobre raposa, ainda agora me valeste, quem te mataria?
Nisto pegou nela e tirou-a do caminho, não viesse algum carro que a traçasse.
A raposa levantou-se, sem o homem ver, e foi pôr-se outra vez mais adiante, fingindo-se morta outra vez.
O homem ainda teve pena dela e tornou-a a arredar do caminho. Mas ela tornou a ir deitar-se outra vez no caminho mais adiante.
O homem à terceira vez disse:
— Que diabo, tanta raposa! — E pegou num cipó e pegou a dar na raposa. Diz a raposa:
— Vês, homem, em que instante pagas o bem com o mal? Por bem fazer, mal haver.


O Mar na cultura popular portuguesa
Lisboa, Terramar, 1998

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